domingo, 23 de dezembro de 2018

Frederico Lourenço - Paraíso

Paraíso
Um distinto catedrático da Universidade de Coimbra (infelizmente já falecido) disse-me uma vez que o paraíso não será paraíso se lá faltar cozido à portuguesa. Por seu lado, a voz que descreve a bem-aventurança depois da morte no final da 4ª Sinfonia de Mahler garante-nos a abundância de feijão verde no Céu. E eu, pela minha parte, não poderei levar a sério um paraíso onde não encontre, no jardim de São Pedro, a roseira “Fantin Latour”.
Ora tratar de um roseiral repleto de roseiras “Fantin Latour” seria, para mim, um bom projeto de vida pós-morte, mas a probabilidade de que a vida depois da morte nisso consista é bastante remota. No entanto, é interessante como, na nossa cultura, as flores são parte integrante da projeção fantasiosa da bem-aventurança no Além, já desde o poeta grego Píndaro, que no século V antes de Cristo descreveu o local paradisíaco onde alguns viverão essa felicidade pós-morte como cheio de rosas – rosas, porém, que florescem espontaneamente sem os cuidados angélicos do já morto jardineiro Frederico Lourenço. Píndaro descreve esse local como tendo luz eterna, onde os bem-aventurados passam o tempo a jogar xadrez e a tocar instrumentos de corda beliscada, sem esquecerem os “exercícios gímnicos” a que estes atletas de corpos perfeitos se tinham dedicado em vida. Portanto é bom saber que, no paraíso, haverá cravos celestiais que nunca desafinam para eu tocar; e ginásios onde possa prosseguir os meus treinos com barras e halteres.
Claro que outras projeções fantasiosas do paraíso que vieram depois nos confiscam o ginásio – decerto por se ter vindo a perceber a falta de lógica patente na imaginação de uma realidade além-morte em que as coisas do corpo ainda façam algum sentido. Dante descreve-nos um paraíso sem jogos de xadrez e sem cozido à portuguesa; talvez por isso, muitos de nós, leitores da “Divina Comédia”, nunca nos tenhamos entusiasmado especialmente com a terceira parte da obra. O Inferno de Dante é dantescamente horrível, mas a forma como nos é apresentado em verso leva-nos a achá-lo bem interessante. Se houve aulas que detestei dar na minha vida de professor foram algumas aulas que dei em Coimbra sobre o Paraíso da “Divina Comédia”. Nunca esquecerei a expressão de tédio estampada nas caras dos alunos, que, apesar de tudo, até tinham vibrado alguma coisa com o Inferno e o Purgatório.
O problema de descrever o paraíso reside na pobreza das palavras que, como já escreveu Platão, não se prestam lá muito para cantar o “lugar supraceleste”. A música consegue chegar bem mais longe. Quando ouvimos o “Benedictus” da “Missa Solemnis” de Beethoven, as palavras são mais ou menos indiferentes, pois o que conta é a sensação que a música dá de termos chegado, de facto, ao paraíso, que nos é mostrado e cartografado por um violino solo. O mesmo poderá dizer-se do 3º andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven, do andamento final da 3ª Sinfonia de Mahler, da Allemande da 4ª Partita para cravo de Bach, da “Ave Maris Stella” do “Vespro della Beata Vergine” de Monteverdi. Estas obras musicais dificultam a vida a agnósticos e ateus, porque a genialidade da sua concretização enquanto prova da existência do Além torna-as supremamente convincentes. No momento em que oiço qualquer uma delas, acredito piamente que depois da vida virá o Céu.
No entanto, são obras que levantam uma pergunta subversiva: o paraíso, afinal, não será aqui na terra? Que garantia tenho eu de que o paraíso me proporcione uma bem-aventurança mais perfeita do que a música de Beethoven e Bach? O mundo dos vivos, onde floresce a roseira “Fantin Latour”, não tem de ser à partida bastante paradisíaco? Um mundo onde há longos dias de praia e desafiantes horas passadas no ginásio; onde há a excitação de jantares de namorados e a felicidade de pessoas a celebrar as suas bodas de ouro; onde há CDs que nos reproduzem a voz da morta Elisabeth Schwarzkopf e transmissões diretas do Royal Ballet de Londres no cinema ao lado de nossa casa; onde há filhos que vos comunicam que eles próprios vão ser pais e onde catedráticos da Universidade de Coimbra podem degustar as suas fartas travessas de cozido à portuguesa. Não será esta a configuração do paraíso?
Claro que o mundo dos vivos tem o problema de, em paralelo com o paraíso a termo certo que proporciona a algumas pessoas, ser também o local onde estão o inferno e o purgatório. E nada é mais trágico do que pensarmos nos seres humanos em número incontável por esse mundo fora cuja vida só lhes proporcionou a experiência do inferno. É justo que a ideologia cristã reserve para esses irmãos o primeiro lugar no paraíso do mundo que há de vir. Mais justo ainda é tentarmos, a título pessoal, espalhar um pouco de paraíso à nossa volta e continuarmos, enquanto cidadãos, a chatear quem de direito, para que, cá em baixo, a experiência do paraíso seja cada vez mais equitativa.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Demagogia e demagogos

O demagogo, no seu significado grego inicial, era o chefe ou condutor do povo, sem qualquer sentido pejorativo, e, com aquele qualificativo, podemos destacar Sólon ou Demóstenes, defensores da democracia. O termo sofreu algumas alterações semânticas ainda no século V a.C., que continuam válidas nos nossos dias, passando a designar, também, aquele que procura dar voz aos medos e aos preconceitos do povo. A demagogia passou, assim, a ser a estratégia de obter poder político apelando aos preconceitos, emoções, medos, vaidades e expectativas do povo, tipicamente por meio de retórica e propaganda passionais, e, frequentemente, usando temas nacionalistas, populistas ou religiosos, bem como o recurso a propostas políticas que não podem ser postas em prática, feitas apenas com o intuito de obter benefício eleitoral ou de popularidade para quem as promete.
Já Aristóteles, na Política, livro V, afirmava que o demagogo utiliza a lisonja e os artifícios oratórios, e, Platão, na Politeia, livro V, utilizou o termo para designar aquele que chama boa às coisas que lhe agradam e más às coisas que ele detesta. E quem não conhece a afirmação de Lincoln (século XIX): "Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas algum tempo; mas não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo."
Max Weber incluiu em tal categoria o jornalista. De facto, dos jornalistas esperava-se um aprofundamento das questões e notícias que transmitem, que desmontassem os discursos políticos, que estudassem as circunstâncias em que ocorrem muitas das situações da nossa vida social, económica, política e financeira, evitando, assim, a demonstração diária de uma ignorância e impreparação confrangedoras, em que até meros boatos ou probabilidades são apresentados como verdades absolutas, não raras vezes desmentidos na hora seguinte, facto que não parece incomodá-los, dada a repetição diária desse comportamento. Do mesmo modo que parece não incomodar quem veicula até à exaustão essas pseudo-notícias em blogues, facebook, etc., fomentando comentários de um nível muito primário, denotando, uns e outros, uma notória incapacidade crítica, e é precisamente isso que esperam e de que se aproveitam os demagogos. Talvez François Truffaut tivesse razão ao afirmar que “A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência. A inteligência tem os seus limites, a estupidez não”, embora eu não consiga descortinar nela qualquer fascínio, mas apenas algo de deprimente.

domingo, 3 de junho de 2018

Eutanásia, significa "uma morte serena e pacífica"

Não vou pedir aos deputados, e aos cidadãos em geral, que leiam a Ética Prática de Peter Singer. Por isso deixo aqui alguns excertos para leitura atenta e reflectida, pode ser que ajude a alterar discursos partidarizados quando, do que se trata, é precisamente do domínio ético-filosófico. Já o tinha feito em 2009, mas agora parece que a capacidade de retenção de conhecimento diminuiu drasticamente por contraponto ao aumento da vozearia desprovida de sentido.
 
Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, Lisboa, 1.ª edição, 2000 (original 1993)
 
P. 20
 
…O comportamento ético não exige a crença no céu e no inferno.

P. 94

O facto de um ser ter consciência de si confere-lhe alguma forma de prioridade na consideração dos seus interesses?

P. 147

Não arranjamos dores de cabeça apenas para podermos tomar uma aspirina e satisfazer assim o nosso desejo de nos libertarmos da dor.

P. 166

Um ser só se pode considerar vítima quando tenha interesses que são violados.

P. 196 e seguintes

Eutanásia, significa “uma morte serena e pacífica”.

Tipos de eutanásia: voluntária, involuntária, não voluntária.

Voluntária – a pedido da pessoa que deseja morrer (pouco se distingue do suicídio assistido)

Involuntária – não se pergunta à pessoa se deseja morrer, e, apesar do seu sofrimento atroz, muitas vezes deseja continuar a viver se lhe perguntarem (caso de bebés com graves deformações ou adultos com deficiências mentais graves desde o nascimento).

Não voluntária – a pessoa não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte e não deixou expresso nada nesse sentido.

Pessoa = ser humano autoconsciente, racional e autónomo.

Estado vegetativo = seres vivos biologicamente mas não biograficamente.

P. 213

De que modo as questões éticas são diferentes quando um ser é capaz de consentir e de facto o faz?

P. 220

John Stuart Mill pensava que o Estado nunca devia interferir com o indivíduo, excepto para impedir danos a terceiros. O bem individual, pensava Mill, não representa uma razão adequada à intervenção do Estado. Mas Mill pode ter tido uma opinião demasiado elevada da racionalidade do ser humano. Pode ser ocasionalmente um bem evitar que as pessoas façam escolhas que obviamente não se baseiam na racionalidade e que podemos ter a certeza de que mais tarde se irão lamentar. No entanto, a proibição da eutanásia voluntária não se pode justificar com bases paternalistas, pois a eutanásia voluntária é um acto para o qual há boas razões. A eutanásia voluntária só ocorre quando, tanto quanto a medicina sabe, uma pessoa sofre de uma doença incurável e dolorosa ou extremamente penosa. Nessas circunstâncias não se pode dizer que optar por uma morte rápida seja obviamente irracional. A força da argumentação em favor da eutanásia voluntária reside na sua combinação de respeito pelas preferências ou autonomia daqueles que se decidem pela eutanásia e na base racional inequívoca da própria decisão.

P. 229

Por que motivo é um mal matar, mas deixar morrer não é?

Não existe qualquer diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer (entre agir e omitir).

P. 236

Se os actos de eutanásia só puderem ser praticados por pessoal médico, não é provável que a propensão para matar alastre descontroladamente por toda a comunidade. Os médicos já têm um poder considerável sobre a vida e a morte, por intermédio da possibilidade de suspenderem o tratamento. Nunca se aventou que os médicos que começam por deixar que os bebés com deficiências profundas morram de pneumonia possam passar a deixar de administrar antibióticos a minorias raciais ou a extremistas políticos. De facto, legalizar a eutanásia poderia muito bem limitar o poder dos médicos, visto que traria para a luz do dia e sujeitaria ao escrutínio de outro médico aquilo que alguns médicos fazem por iniciativa pessoal e em segredo.

P. 246

Se um médico decidir, em consulta com os pais, não operar um bebé com síndrome de Down e obstrução intestinal (deixando-o, assim, morrer), a sua motivação será semelhante à do médico que lhe dá uma injecção letal em vez de deixar o bebé morrer. Em nenhum dos casos é necessário qualquer heroísmo moral. Não operar porá fim à vida com tanta certeza como uma injecção letal. Deixar morrer tem, de facto, uma vítima identificável. (…) As diferenças extrínsecas que normalmente demarcam a morte provocada do deixar morrer explicam o facto por que razão, normalmente, achamos que matar é bem pior que deixar morrer.

P. 317 (Ética e Lei)

Temos alguma obrigação moral de obedecer à lei quando a lei protege e sanciona coisas que achamos totalmente erradas?

Filósofo Robert Paul Wolff: “A marca definidora do Estado é a autoridade, o direito de governar. A primeira obrigação do homem é a autonomia, a recusa em ser governado. Poderia parecer, então, que não há solução para o conflito entre a autonomia do indivíduo e a suposta autoridade do Estado. Enquanto o homem cumprir a sua obrigação de ser o autor das suas decisões resistirá à pretensão do Estado de ter autoridade sobre si.”

Henry Thoreau, Civil Disobedience, século XIX: “Terá o cidadão de entregar a sua consciência ao legislador, nem que seja por um só momento ou no grau mínimo? Para que terá então todo o homem uma consciência? Penso que devemos ser em primeiro lugar homens e só depois súbditos. Não é desejável cultivar o respeito pela lei nem pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer sempre aquilo que penso ser justo.”

Atenção: a ética requer imperativos racionais e universais.

P. 374

Qual é a importância moral da distinção entre provocar a morte de um paciente, retirando-lhe o tratamento necessário ao prolongamento da vida, e provocá-la por meio de uma intervenção activa?

P. 381

 
Voltaire: “não concordo com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo”.