terça-feira, 29 de outubro de 2024

«Ventura, Pedro Pinto e o meu tio reaccionário»

Ricardo Paes Mamede: «Ventura, Pedro Pinto e o meu tio reaccionário», no jornal Público, https://www.publico.pt/.../ventura-pedro-pinto-tio...
«Quando eu era miúdo, os jantares de Natal não eram pacíficos. Não sendo uma família numerosa, éramos bastantes para reunir à mesa eleitores dos quatro partidos que então tinham representação parlamentar. Entre nós, como em tantas outras famílias, havia um tio reaccionário. Enquanto os restantes, mesmo com opiniões diferentes, procuravam moderar o tom do debate quando os ânimos aqueciam, ele tinha prazer em provocar o desconforto geral.
Afirmava sem hesitar que os “pretos são burros”, que os “comunistas merecem ser presos e torturados”, que os “ladrões deviam ter as mãos amputadas”, que os “incendiários têm de ser enforcados em praça pública”, e outras diatribes do género. Muitas vezes suspeitei que ele não acreditava em tudo o que dizia. Tratava-se, acima de tudo, de uma estratégia de provocação para criar mau ambiente. Gerava incómodo por prazer maldoso, levando a paciência alheia para lá do limite. E conseguia o que queria, invariavelmente.
Lembrei-me dele esta semana, ao ouvir as reacções dos dirigentes do Chega após um incidente trágico. Um polícia matou um cidadão negro, numa zona desfavorecida, em circunstâncias pouco claras. De imediato, André Ventura veio pedir que o agente fosse condecorado. Acrescentou que os agentes deviam ter mais liberdade para disparar a matar. Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, afirmou que se a polícia matasse mais pessoas haveria ordem no país. Um assessor do partido congratulou-se com a morte de um “eleitor do Bloco”. A ideia de um “tiro ao alvo” por parte de agentes de autoridade – tão absurdo e grotesco quanto isso – foi exposta sem pudor, em afirmações impróprias para qualquer responsável político.
Como o meu tio à mesa de Natal, estes dirigentes não têm o propósito de esclarecer ou convencer, apenas de provocar. O objectivo é obter espaço nos media, destaque nas redes sociais e ruído mediático que torna difícil aos cidadãos discernirem entre o debate real e a provocação deliberada. E conseguem.
Mas há uma diferença de escala entre o meu tio e estes provocadores profissionais. Tudo o que ele conseguia era estragar uma noite de convívio familiar. Estes novos populistas vão muito mais além: destroem a coesão social e ameaçam a democracia com uma retórica que banaliza o discurso violento, legitima a agressão e divide as pessoas entre os que são “a favor da ordem” e todos os outros, colocados de imediato na posição de “inimigos” ou “ameaças”.
A estratégia é simples e antiga, mas a sua eficácia na era digital é devastadora. Demonizam inimigos internos ou externos, normalmente minorias étnicas, imigrantes ou grupos de adversários ideológicos. Em vez de reconhecerem a complexidade dos desafios sociais e políticos contemporâneos, simplificam tudo apontando o dedo a grupos que já se encontram vulneráveis ou estigmatizados, identificando-os como uma ameaça e como causa de todos os problemas, polarizando assim o debate e alimentando o medo, em vez de contribuírem para soluções construtivas.
Desprezam as instituições, acusando os tribunais, a imprensa e “os políticos” (como se eles não o fossem) de estarem ao serviço de interesses obscuros (como se o financiamento das suas campanhas eleitorais tivesse alguma vez sido transparente). Reivindicam a “liberdade” para dizer o que lhes dá na gana, como se a liberdade nada tivesse a ver com responsabilidade.
A provocação incessante, já sabemos, é a estratégia desta direita radical. Tal como o meu tio reaccionário ficava satisfeito com o desconforto alheio, estes dirigentes provocam para fazerem notícia, sabendo que o sistema mediático é a sua caixa de ressonância. Na ausência de mecanismos de responsabilização, conseguem transmitir ideias extremas, quase sempre absurdas, que gradualmente são normalizadas no espaço público.
A provocação incessante, já sabemos, é a estratégia desta direita radical. Tal como o meu tio reaccionário ficava satisfeito com o desconforto alheio, estes dirigentes provocam para fazerem notícia, sabendo que o sistema mediático é a sua caixa de ressonância. Na ausência de mecanismos de responsabilização, conseguem transmitir ideias extremas, quase sempre absurdas, que gradualmente são normalizadas no espaço público.
O discurso do Chega é tão ou mais perigoso quando promove a ideia de que a polarização constante entre forças políticas é, em si, a essência da democracia – quando a sua essência é, na verdade, o respeito pela diversidade e a resolução pacífica das dissensões.
Aqui como em quase tudo o resto, a estratégia do Chega não tem nada de original, limita-se a imitar as manobras trumpistas, bolsonaristas e de todos os que os seguiram, um pouco por todo o mundo.
Ao colocarem os seus opositores como inimigos dos “portugueses de bem” (que eles próprios não são, qualquer que seja a definição), desvirtuam o conceito de comunidade política e degradam o papel do debate democrático. Os líderes do Chega sabem-no, mas pouco lhes importa. A sua visão é de curto prazo. Não têm um projecto para o futuro, apenas um propósito imediato: captar votos através do ressentimento, do medo e da divisão.
É tempo de percebermos que o Chega é mesmo uma ameaça ao sistema democrático e ao Estado de direito. Utiliza a liberdade de expressão não para enriquecer o debate, mas para o esvaziar, substituindo-o pela gritaria, pelo insulto e pela agressão. Em última análise, ao banalizar o discurso de ódio, coloca as democracias perante um dilema – como responder à provocação sem abdicar dos princípios de abertura e liberdade que definem o próprio sistema democrático.
Quando não são travados, partidos como este destroem as instituições que garantem a liberdade. É por isso fundamental que todos – cidadãos, jornalistas, instituições – estejam atentos e que se recusem a ser cúmplices deste jogo perigoso.
Com as declarações que fizeram na sequência de uma tragédia, sem esperar sequer pelo esclarecimento das circunstâncias em que ocorreu, os dirigentes do Chega ultrapassaram todas as fronteiras da decência.
O meu tio nunca passou de um provocador de jantares de Natal. O que os dirigentes do Chega fazem vai muito além disso. A sua missão é minar a confiança nos princípios que sustentam as sociedades livres e plurais, abrindo caminho a um futuro sombrio em que as diferenças não são respeitadas, mas silenciadas. A queixa-crime contra André Ventura e Pedro Pinto, da iniciativa de um conjunto vasto de cidadãos, é a expressão, urgente e necessária, da intolerância democrática face ao oportunismo e à irresponsabilidade.»


terça-feira, 8 de agosto de 2023

Miguel Granja, A Dignidade Guiando o Povo


“Pegarão então nos filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém”. É assim que Platão, no Livro V da 'República' (460c), descreve e prescreve, com a naturalidade própria de um mundo desprovido de cristãos, os benefícios, e até os imperativos (“Se, realmente, queremos que a raça dos guardiões se mantenha pura”), do infanticídio eugenista.
O ἀνάπηρος (anápiros), o disforme, o deficiente, o mutilado, o inválido. Levar Platão a sério é também ler aquilo que nele nos escandaliza hoje e compreender a razão, a raiz, a origem do nosso escândalo. A exposição e o abandono dos bebés “disformes” a uma morte certa (e merecida, porque a disformidade não é digna de viver) faz parte do pensamento ético-político platónico, das práticas e costumes de toda a antiguidade grega, e a própria Esparta, cuja constituição tanto inspirou Platão, concedia aos seus anciãos, como relata Licurgo (16, 1), o direito de vida e morte sobre os recém-nascidos, condenando os “reprovados”, os “disformes”, à exposição e abandono num lugar chamado “os Depósitos” (Άποθέται), situado nas escarpas do Taigeto.
Este foi o mundo – discriminatório, infanticida, eugenista, demoníaco – que a Bíblia veio incomodar, enfrentar e, contra todas as expectativas, vencer. E foi essa vitória, e a revolução na concepção do humano que ela traz consigo, que tornou possível este momento, que as nossas fibras bíblicas mais do que as nossas sinapses agnósticas, reconhecem imediatamente como mágico. Como revelatório. Como sintético. Como contendo em si, naquela perna morta e naquele sorriso vivo, o segredo, não apenas desta breve jornada de seis dias da nossa juventude, mas sobretudo da longa jornada de mais de dois milénios da nossa civilização. Ali, segurando aquela cadeira de rodas, como se de um trono papal se tratasse, não está apenas a força fresca de dezenas de braços jovens: está, servindo-se deles, a energia incansável de milhares de anos.
Eu sabia que esta foto era mais do que uma foto. Mal a vi, vi um Delacroix dos nossos tempos. Ambos os Delacroix traduzem o poderoso símbolo da emancipação dos mais fracos e da sua vitória sobre os seus opressores. Em ambos os Delacroix, a própria composição formal, como se fosse um palimpsesto secreto ou resultasse do mesmo pincel invisível, se orienta em torno de um triângulo formado pela personagem central e pela multidão que a rodeia, carrega e segue. Duas obras-primas do Ocidente judaico-cristão: uma, óleo sobre tela; outra, alma sobre carne. Dois Delacroix: nenhum deles tem nome: os seus nomes são princípios: ela Liberdade, ele Dignidade. E ambas guiando o povo. O paradoxo, no entanto, maravilhoso e tipicamente bíblico, é que, na verdade, é o Delacroix de 2023 que inspira o de 1830. Cronologicamente posterior, o Delacroix das margens de Lisboa é metafisicamente anterior ao Delacroix das ruas de Paris. É o posterior que esclarece e dá origem ao anterior. A Bíblia vira tudo ao contrário: é a sua forma original de endireitar tudo.

Texto publicado ontem no Fb e, num dos comentários, António Abreu disse que o jovem na foto é o seu filho Lourenço.


 

sábado, 24 de junho de 2023

Grupo Wagner

 O Grupo Wagner virou-se contra o seu único cliente. O contrato expirou em Maio e este grupo mercenário não recebeu o pagamento acordado. Como a única coisa que os move é o dinheiro e não o amor à pátria, liquidada a conta pode ser que a ocupação de cidades russas fique por aqui. Se tal não acontecer poderemos, quem sabe, assistir â retirada de militares russos de território da Ucrânia para irem defender a mãe Rússia e deixarem de infernizar a vida dos ucranianos. No pior dos cenários poderemos começar a ouvir As Valquírias de Richard Wagner.



sábado, 21 de janeiro de 2023

Pedro Nuno Santos e a verdade

Lamento quem se deslumbrou com a demissão de Pedro Nuno Santos de ministro das infraestruturas, considerando-o quase um acto heróico, talvez por ser invulgar por aqui. Para uma livre-pensadora, cujos neurónios são muito activos e ariscos, nada do que o jovem Pedro disse, há cerca de um mês, fez sentido, pelo que me limitei a esperar pela verdade, que surgiu ontem, pelo próprio, depois da audição no parlamento, há dias, da administradora executiva da TAP, onde a mesma declarou ter em seu poder toda a documentação comprovativa de que tudo tem sido feito com o conhecimento da tutela. Maldição a minha por não ter palas nos olhos e os neurónios continuarem em bom estado. 





segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

António Campos sobre o seu PS actual

«O meu partido hoje não está a defender uma democracia responsável e transparente.

Não está a respeitar a ética republicana, porque as próprias instituições não estão a funcionar. Em qualquer democracia responsável e transparente, onde há um poder há um contrapoder. Isso é a regra básica da democracia. E os contrapoderes não estão a funcionar. O meu partido é responsável pelos contrapoderes não estarem a funcionar.

Nós tivemos agora problemas no Ministério das Finanças com a incorporação de uma senhora [Alexandre Reis], em que a Inspeção Geral das Finanças, que é responsável por isso, não funcionou.

E temos agora a agricultura.

É ela que se deve demitir. Por uma razão muito simples: Eu não sei se ela sabia ou não da senhora. A senhora era Diretora Regional do Norte, desempenhava o lugar de alta importância. Nunca veio a público o que havia sobre ela. Ela entra para secretária de Estado e, passado 24 horas, nós passámos a conhecer esse currículo dela e, portanto, aqui há uma falta total de funcionamento das instituições, e da ética republicana, é verdade. Mas a ética está ligada às instituições.

O primeiro-ministro é aluno do Presidente da República e os dois têm a mesma tese: "O que é da política é da política, e o que é da justiça e da justiça". Isso é a tese do professor e do aluno, dos dois juristas que dirigem hoje o país.

E o país não suporta isto. A democracia não suporta o que se está a passar. Eu lutei uma vida pela democracia e hoje assisto ao desmoronar total das instituições que eu também ajudei a criar, depois do 25 de Abril.

Não têm nada a ver este PS com o PS que eu criei. Era o “Partido da Liberdade”. Instalámos as instituições todas. Onde havia um poder criámos sempre um contrapoder, para fiscalizar o poder instituído. E hoje não funcionam. E em democracia nós estamos todos a trabalhar, neste momento, para a extrema-direita e para desacreditar a democracia transparente e responsável.

O problema não é o Governo. O problema é o partido que eu criei, que está em risco. Os governos são passageiros e o que está em risco é o partido que eu ajudei a criar aqui em minha casa, clandestinamente, e que depois foi criado legalmente na Alemanha. E esse é que está em risco, porque os governos são passagens. Agora, o meu partido, neste momento, está em risco. É óbvio.»

(respostas dadas em entrevista à RR no dia 6/01/2023)


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O país de Marcelo

 O P.R. não precisa ir tão longe para constatar "in loco" a violação de direitos humanos. Dê um saltinho ao alentejo e encontrará em doses concentradas comportamentos e discursos racistas, xenófobos, homofóbicos, atropelos aos direitos constitucionais, etc., etc.


quinta-feira, 25 de julho de 2019

Boris Johnson, um clássico?

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Não sei se alguma vez aconteceu. Mas, hoje, talvez pela primeira vez na História recente, assistimos à nomeação para primeiro-ministro de um indivíduo cuja formação académica é uma licenciatura em Estudos Clássicos: portanto, Grego e Latim.
E não é uma licenciatura conferida por uma universidade qualquer. Boris Johnson é licenciado em Estudos Clássicos pela Universidade de Oxford.
E, dentro da Universidade de Oxford, ele não frequentou um colégio qualquer. É fruto de Balliol College - tradicionalmente o colégio dos inteligentes (tal como Christ Church era tradicionalmente o colégio dos aristocratas ricos). Balliol nunca foi um colégio de burros.
E, por isso, é preciso ter esta noção: por muito que Johnson pareça à opinião pública como uma espécie de palhaço, «he's anything but». Isto é: ele parece-nos um palhaço, porque foi essa a personagem que ele escolheu como via rápida para aquilo que sempre foi a sua ambição. Ser inquilino do n.º 10 de Downing Street. Mas há um calculismo enorme - parece-me a mim - em tudo o que ele faz.
Acaba por fazer algum sentido que o helenista e latinista Johnson seja a partir de hoje um actor de primeira importância no palco internacional: porque os tempos que vivemos já foram antevistos por gregos e romanos. Aquilo que é hoje um político de sucesso é um modelo que Platão já descreveu no seu arrepiante diálogo «Górgias». Trata-se de alguém que é capaz de dizer tudo e o seu contrário. Trata-se de alguém que aposta sempre naquilo que já as Musas tinham dito a Hesíodo: «sabemos dizer muitas mentiras semelhantes a verdades».
Johnson, na sua carreira de político e de jornalista, já disse tudo e o seu contrário. Já foi pro-europeu - e agora é anti-europeu. Já foi anti-gay - e agora é pro-gay. Num famoso debate com Mary Beard, defendeu o ponto de vista de que a literatura grega era muito melhor do que a romana. Beard, bem munida para o debate, leu em voz alta um elogio rasgado da literatura latina onde se afirmava que o melhor livro alguma vez escrito em toda a história da humanidade é a Eneida de Vergílio. Palavras (sublinhou ela) de um texto escrito por... Boris Johnson.
É difícil sentir alguma coisa por Johnson que não seja a maior desconfiança. Mas, ao menos, o dia de hoje deixou uma pequena jóia para ser dita no futuro por defensores dos Estudos Clássicos. À pergunta que estamos sempre a ouvir - «mas isso de uma licenciatura em Grego e Latim serve para quê?» - já podemos dar esta resposta: «serve para ser primeiro-ministro».
A partir de hoje, é uma saída profissional comprovada para licenciados em Estudos Clássicos.
(Texto de Frederico Lourenço, publicado no FB)

domingo, 23 de dezembro de 2018

Frederico Lourenço - Paraíso

Paraíso
Um distinto catedrático da Universidade de Coimbra (infelizmente já falecido) disse-me uma vez que o paraíso não será paraíso se lá faltar cozido à portuguesa. Por seu lado, a voz que descreve a bem-aventurança depois da morte no final da 4ª Sinfonia de Mahler garante-nos a abundância de feijão verde no Céu. E eu, pela minha parte, não poderei levar a sério um paraíso onde não encontre, no jardim de São Pedro, a roseira “Fantin Latour”.
Ora tratar de um roseiral repleto de roseiras “Fantin Latour” seria, para mim, um bom projeto de vida pós-morte, mas a probabilidade de que a vida depois da morte nisso consista é bastante remota. No entanto, é interessante como, na nossa cultura, as flores são parte integrante da projeção fantasiosa da bem-aventurança no Além, já desde o poeta grego Píndaro, que no século V antes de Cristo descreveu o local paradisíaco onde alguns viverão essa felicidade pós-morte como cheio de rosas – rosas, porém, que florescem espontaneamente sem os cuidados angélicos do já morto jardineiro Frederico Lourenço. Píndaro descreve esse local como tendo luz eterna, onde os bem-aventurados passam o tempo a jogar xadrez e a tocar instrumentos de corda beliscada, sem esquecerem os “exercícios gímnicos” a que estes atletas de corpos perfeitos se tinham dedicado em vida. Portanto é bom saber que, no paraíso, haverá cravos celestiais que nunca desafinam para eu tocar; e ginásios onde possa prosseguir os meus treinos com barras e halteres.
Claro que outras projeções fantasiosas do paraíso que vieram depois nos confiscam o ginásio – decerto por se ter vindo a perceber a falta de lógica patente na imaginação de uma realidade além-morte em que as coisas do corpo ainda façam algum sentido. Dante descreve-nos um paraíso sem jogos de xadrez e sem cozido à portuguesa; talvez por isso, muitos de nós, leitores da “Divina Comédia”, nunca nos tenhamos entusiasmado especialmente com a terceira parte da obra. O Inferno de Dante é dantescamente horrível, mas a forma como nos é apresentado em verso leva-nos a achá-lo bem interessante. Se houve aulas que detestei dar na minha vida de professor foram algumas aulas que dei em Coimbra sobre o Paraíso da “Divina Comédia”. Nunca esquecerei a expressão de tédio estampada nas caras dos alunos, que, apesar de tudo, até tinham vibrado alguma coisa com o Inferno e o Purgatório.
O problema de descrever o paraíso reside na pobreza das palavras que, como já escreveu Platão, não se prestam lá muito para cantar o “lugar supraceleste”. A música consegue chegar bem mais longe. Quando ouvimos o “Benedictus” da “Missa Solemnis” de Beethoven, as palavras são mais ou menos indiferentes, pois o que conta é a sensação que a música dá de termos chegado, de facto, ao paraíso, que nos é mostrado e cartografado por um violino solo. O mesmo poderá dizer-se do 3º andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven, do andamento final da 3ª Sinfonia de Mahler, da Allemande da 4ª Partita para cravo de Bach, da “Ave Maris Stella” do “Vespro della Beata Vergine” de Monteverdi. Estas obras musicais dificultam a vida a agnósticos e ateus, porque a genialidade da sua concretização enquanto prova da existência do Além torna-as supremamente convincentes. No momento em que oiço qualquer uma delas, acredito piamente que depois da vida virá o Céu.
No entanto, são obras que levantam uma pergunta subversiva: o paraíso, afinal, não será aqui na terra? Que garantia tenho eu de que o paraíso me proporcione uma bem-aventurança mais perfeita do que a música de Beethoven e Bach? O mundo dos vivos, onde floresce a roseira “Fantin Latour”, não tem de ser à partida bastante paradisíaco? Um mundo onde há longos dias de praia e desafiantes horas passadas no ginásio; onde há a excitação de jantares de namorados e a felicidade de pessoas a celebrar as suas bodas de ouro; onde há CDs que nos reproduzem a voz da morta Elisabeth Schwarzkopf e transmissões diretas do Royal Ballet de Londres no cinema ao lado de nossa casa; onde há filhos que vos comunicam que eles próprios vão ser pais e onde catedráticos da Universidade de Coimbra podem degustar as suas fartas travessas de cozido à portuguesa. Não será esta a configuração do paraíso?
Claro que o mundo dos vivos tem o problema de, em paralelo com o paraíso a termo certo que proporciona a algumas pessoas, ser também o local onde estão o inferno e o purgatório. E nada é mais trágico do que pensarmos nos seres humanos em número incontável por esse mundo fora cuja vida só lhes proporcionou a experiência do inferno. É justo que a ideologia cristã reserve para esses irmãos o primeiro lugar no paraíso do mundo que há de vir. Mais justo ainda é tentarmos, a título pessoal, espalhar um pouco de paraíso à nossa volta e continuarmos, enquanto cidadãos, a chatear quem de direito, para que, cá em baixo, a experiência do paraíso seja cada vez mais equitativa.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Demagogia e demagogos

O demagogo, no seu significado grego inicial, era o chefe ou condutor do povo, sem qualquer sentido pejorativo, e, com aquele qualificativo, podemos destacar Sólon ou Demóstenes, defensores da democracia. O termo sofreu algumas alterações semânticas ainda no século V a.C., que continuam válidas nos nossos dias, passando a designar, também, aquele que procura dar voz aos medos e aos preconceitos do povo. A demagogia passou, assim, a ser a estratégia de obter poder político apelando aos preconceitos, emoções, medos, vaidades e expectativas do povo, tipicamente por meio de retórica e propaganda passionais, e, frequentemente, usando temas nacionalistas, populistas ou religiosos, bem como o recurso a propostas políticas que não podem ser postas em prática, feitas apenas com o intuito de obter benefício eleitoral ou de popularidade para quem as promete.
Já Aristóteles, na Política, livro V, afirmava que o demagogo utiliza a lisonja e os artifícios oratórios, e, Platão, na Politeia, livro V, utilizou o termo para designar aquele que chama boa às coisas que lhe agradam e más às coisas que ele detesta. E quem não conhece a afirmação de Lincoln (século XIX): "Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas algum tempo; mas não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo."
Max Weber incluiu em tal categoria o jornalista. De facto, dos jornalistas esperava-se um aprofundamento das questões e notícias que transmitem, que desmontassem os discursos políticos, que estudassem as circunstâncias em que ocorrem muitas das situações da nossa vida social, económica, política e financeira, evitando, assim, a demonstração diária de uma ignorância e impreparação confrangedoras, em que até meros boatos ou probabilidades são apresentados como verdades absolutas, não raras vezes desmentidos na hora seguinte, facto que não parece incomodá-los, dada a repetição diária desse comportamento. Do mesmo modo que parece não incomodar quem veicula até à exaustão essas pseudo-notícias em blogues, facebook, etc., fomentando comentários de um nível muito primário, denotando, uns e outros, uma notória incapacidade crítica, e é precisamente isso que esperam e de que se aproveitam os demagogos. Talvez François Truffaut tivesse razão ao afirmar que “A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência. A inteligência tem os seus limites, a estupidez não”, embora eu não consiga descortinar nela qualquer fascínio, mas apenas algo de deprimente.

domingo, 3 de junho de 2018

Eutanásia, significa "uma morte serena e pacífica"

Não vou pedir aos deputados, e aos cidadãos em geral, que leiam a Ética Prática de Peter Singer. Por isso deixo aqui alguns excertos para leitura atenta e reflectida, pode ser que ajude a alterar discursos partidarizados quando, do que se trata, é precisamente do domínio ético-filosófico. Já o tinha feito em 2009, mas agora parece que a capacidade de retenção de conhecimento diminuiu drasticamente por contraponto ao aumento da vozearia desprovida de sentido.
 
Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, Lisboa, 1.ª edição, 2000 (original 1993)
 
P. 20
 
…O comportamento ético não exige a crença no céu e no inferno.

P. 94

O facto de um ser ter consciência de si confere-lhe alguma forma de prioridade na consideração dos seus interesses?

P. 147

Não arranjamos dores de cabeça apenas para podermos tomar uma aspirina e satisfazer assim o nosso desejo de nos libertarmos da dor.

P. 166

Um ser só se pode considerar vítima quando tenha interesses que são violados.

P. 196 e seguintes

Eutanásia, significa “uma morte serena e pacífica”.

Tipos de eutanásia: voluntária, involuntária, não voluntária.

Voluntária – a pedido da pessoa que deseja morrer (pouco se distingue do suicídio assistido)

Involuntária – não se pergunta à pessoa se deseja morrer, e, apesar do seu sofrimento atroz, muitas vezes deseja continuar a viver se lhe perguntarem (caso de bebés com graves deformações ou adultos com deficiências mentais graves desde o nascimento).

Não voluntária – a pessoa não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte e não deixou expresso nada nesse sentido.

Pessoa = ser humano autoconsciente, racional e autónomo.

Estado vegetativo = seres vivos biologicamente mas não biograficamente.

P. 213

De que modo as questões éticas são diferentes quando um ser é capaz de consentir e de facto o faz?

P. 220

John Stuart Mill pensava que o Estado nunca devia interferir com o indivíduo, excepto para impedir danos a terceiros. O bem individual, pensava Mill, não representa uma razão adequada à intervenção do Estado. Mas Mill pode ter tido uma opinião demasiado elevada da racionalidade do ser humano. Pode ser ocasionalmente um bem evitar que as pessoas façam escolhas que obviamente não se baseiam na racionalidade e que podemos ter a certeza de que mais tarde se irão lamentar. No entanto, a proibição da eutanásia voluntária não se pode justificar com bases paternalistas, pois a eutanásia voluntária é um acto para o qual há boas razões. A eutanásia voluntária só ocorre quando, tanto quanto a medicina sabe, uma pessoa sofre de uma doença incurável e dolorosa ou extremamente penosa. Nessas circunstâncias não se pode dizer que optar por uma morte rápida seja obviamente irracional. A força da argumentação em favor da eutanásia voluntária reside na sua combinação de respeito pelas preferências ou autonomia daqueles que se decidem pela eutanásia e na base racional inequívoca da própria decisão.

P. 229

Por que motivo é um mal matar, mas deixar morrer não é?

Não existe qualquer diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer (entre agir e omitir).

P. 236

Se os actos de eutanásia só puderem ser praticados por pessoal médico, não é provável que a propensão para matar alastre descontroladamente por toda a comunidade. Os médicos já têm um poder considerável sobre a vida e a morte, por intermédio da possibilidade de suspenderem o tratamento. Nunca se aventou que os médicos que começam por deixar que os bebés com deficiências profundas morram de pneumonia possam passar a deixar de administrar antibióticos a minorias raciais ou a extremistas políticos. De facto, legalizar a eutanásia poderia muito bem limitar o poder dos médicos, visto que traria para a luz do dia e sujeitaria ao escrutínio de outro médico aquilo que alguns médicos fazem por iniciativa pessoal e em segredo.

P. 246

Se um médico decidir, em consulta com os pais, não operar um bebé com síndrome de Down e obstrução intestinal (deixando-o, assim, morrer), a sua motivação será semelhante à do médico que lhe dá uma injecção letal em vez de deixar o bebé morrer. Em nenhum dos casos é necessário qualquer heroísmo moral. Não operar porá fim à vida com tanta certeza como uma injecção letal. Deixar morrer tem, de facto, uma vítima identificável. (…) As diferenças extrínsecas que normalmente demarcam a morte provocada do deixar morrer explicam o facto por que razão, normalmente, achamos que matar é bem pior que deixar morrer.

P. 317 (Ética e Lei)

Temos alguma obrigação moral de obedecer à lei quando a lei protege e sanciona coisas que achamos totalmente erradas?

Filósofo Robert Paul Wolff: “A marca definidora do Estado é a autoridade, o direito de governar. A primeira obrigação do homem é a autonomia, a recusa em ser governado. Poderia parecer, então, que não há solução para o conflito entre a autonomia do indivíduo e a suposta autoridade do Estado. Enquanto o homem cumprir a sua obrigação de ser o autor das suas decisões resistirá à pretensão do Estado de ter autoridade sobre si.”

Henry Thoreau, Civil Disobedience, século XIX: “Terá o cidadão de entregar a sua consciência ao legislador, nem que seja por um só momento ou no grau mínimo? Para que terá então todo o homem uma consciência? Penso que devemos ser em primeiro lugar homens e só depois súbditos. Não é desejável cultivar o respeito pela lei nem pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer sempre aquilo que penso ser justo.”

Atenção: a ética requer imperativos racionais e universais.

P. 374

Qual é a importância moral da distinção entre provocar a morte de um paciente, retirando-lhe o tratamento necessário ao prolongamento da vida, e provocá-la por meio de uma intervenção activa?

P. 381

 
Voltaire: “não concordo com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo”. 



 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Frederico Lourenço, Utopia setecentista em Jerusalém



«A literatura do século XVIII não é só punhos de renda e saias em balão. Também não é só o cinismo de Valmont nas “Ligações Perigosas” (1782) nem só a exaltação suicidária de Werther (1774). Para lá do mártir judeu António José da Silva ou do libertino Casanova (e diferentemente de Samuel Johnson ou de Voltaire) há um homem-mundo chamado Lessing. E não há melhor ponto de partida para se considerar esta fascinante figura do que a sua peça “Nathan o Sábio” (“Nathan der Weise”). Publicada em 1779 mas só representada, já depois da morte de Lessing, em 1783, este drama supremo do Humanismo, este apelo à reconciliação das três grande religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islão) não só estilhaça todos os lugares-comuns sobre a literatura setecentista como, em 2014, não podia ser mais actual.
A acção da peça desenrola-se em finais do século XII, na cidade das Três Religiões, Jerusalém, num momento histórico em que perfazia mais ou menos vinte anos que o Papa se dignara admitir a existência de um pequeno país chamado Portugal. Em Coimbra, na altura a capital portuguesa, reinava Sancho, primeiro de seu nome. Em Jerusalém reinava Saladino, o feroz déspota muçulmano, que a tradição romanesca sempre gostou de pintar com cores de nobreza sanguinária.
Mas Saladino, antes mesmo de começar a peça “Nathan o Sábio”, acabara de ter um gesto não-sanguinário que deixara a cidade de Jerusalém estupefacta. Salvou da pena de morte um jovem cavaleiro templário cuja cabeça já estava no cepo. Jovem templário esse cuja primeira acção, após o indulto inesperado do sultão, é salvar das chamas uma jovem judia – a filha adoptiva de Nathan, o sábio judeu protagonista da peça. Logo antes, portanto, de a trama da peça começar, temos estes gestos inusitados de compreensão e de tolerância da parte de um muçulmano para com um cristão e da parte de um cristão para com uma (alegada) judia.
Seria pena contar aqui o enredo desta obra dramática fascinante; não quero estragar a leitura a quem não a tenha lido ainda. Não deslustrarei, contudo, a teia de ingredientes bem aristotélicos (peripécia, catástrofe, anagnórise) se referir aqui o momento-chave deste drama, que ocorre quando o judeu Nathan conta ao sultão a História dos Três Anéis.
Havia outrora um anel que detinha o poder de tornar quem o usava amado à vista de Deus e dos homens. Este anel foi passando de geração em geração, até que um pai de três filhos quis deixá-lo àquele dos três a quem ele mais amava. No entanto, apercebeu-se antes de morrer que amava os três filhos de forma igual. Assim, mandou fazer em segredo duas cópias do anel sagrado e, no leito de morte, deu um anel a cada filho, já insciente de qual era o verdadeiro anel. Os próprios filhos, incompatibilizados entre si, esforçam-se por descobrir qual dos três anéis é o verdadeiro – aquele que daria ao seu possuidor o poder mais legítimo. Mas as cópias estavam tão bem feitas que era impossível distinguir os anéis entre si. Por fim, litigando uns contra os outros perante um sábio juiz, ouvem da boca deste a sentença, segundo a qual o que conta é o amor com que o pai legou os anéis aos três filhos amados, pelo que das duas uma: ou os três anéis têm de ser considerados falsos; ou então são os três verdadeiros.
Esta belíssima parábola tem como referente óbvio as três religiões: Judaísmo, Cristianismo e Islão. Nenhuma das três é “a verdadeira”, porque cada uma das três é verdadeira. Mais: nas palavras do juiz, as três religiões são necessárias e requeridas por Deus. “É possível que o Pai já não quisesse em sua casa a tirania do único anel”.
Muito à frente do seu tempo e – como as tensões persistentes entre judeus, muçulmanos e cristãos ainda hoje provam – muito à frente do nosso, este extraordinário texto de Lessing constitui um convite à reflexão e desafia-nos a considerar o fenómeno religioso sob o prisma das Luzes. Prisma de que continuamos ainda tão precisados hoje no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, o enredo da peça pretende confirmar a importância da consciência individual; a importância da escolha que cada um faz e que os outros têm de respeitar. No meio de tantos pensamentos ousados e de tantas frases arrojadas com que nos deparamos em “Nathan o Sábio”, há uma expressão que me parece constituir o arrojo supremo: “ninguém deve ser obrigado a nada” (“niemand muss müssen”). Em 2014, temos tanto a aprender com este texto de 1779.»

Frederico Lourenço (texto publicado hoje no Facebook)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Rui Ramos, Se eu fosse mesmo um neo-liberal



«Se eu fosse mesmo um “neo-liberal”, um daqueles sicários sem escrúpulos do “capitalismo selvagem”, como as esquerdas gostam de dizer, que queria eu? Segundo as esquerdas anti-capitalistas, a minha lista para o Pai Natal seria a seguinte: acabar com o Estado social, baixar os salários de toda a gente menos dos executivos ricos, e, já agora, instaurar uma ditadura. Vamos então admitir que, enquanto “neo-liberal” selvagem, eram esses os meus desejos. Acontece que, depois, as esquerdas acrescentam que eu também quero a troika, a austeridade, e a dívida. E é aqui que as esquerdas não fazem sentido.

Não, meus caros amigos anti-capitalistas, estão muito, mas mesmo muito enganados. Se eu fosse um neo-liberal desalmado, com os objectivos que a esquerda atribui a essa espécie biológica, eu não queria a troika, nem aceitaria a austeridade, nem estaria disposto a pagar a dívida. Muito pelo contrário. Se eu fosse mesmo, mas mesmo, um neo-liberal desses que vos assustam tanto, o que eu queria era a bancarrota, a saída do euro, a desvalorização e a inflação, que foi aquilo que a troika e a austeridade preveniram até agora.

E porquê? Porque a bancarrota, a saída do euro, a desvalorização e a inflação, seriam a via mais segura para liquidar o Estado social, comprimir definitivamente os salários e talvez mesmo experimentar, com o país fora da UE, algum velho autoritarismo. Se eu fosse um neo-liberal como a esquerda os pinta, eu não queria ver Passos Coelho no governo a prever a reposição dos salários do Estado, nem Paulo Macedo a viabilizar o SNS, ou Nuno Crato a tentar corrigir o ensino público. Não, o que eu queria era ver António Costa (ou Seguro), Catarina Martins e Jerónimo de Sousa muito juntinhos num governo “verdadeiramente de esquerda”, a renegar a dívida pública, a recusar o tratado orçamental europeu, a adoptar uma nova moeda, e a sair da UE. Num país sem os petróleos do socialismo venezuelano, era meio caminho andado para a declaração de irrelevância do Estado social e para uma economia de salários cubanos.

As esquerdas anti-capitalistas atribuem todos os males do país ao ajustamento. Até o facto de não renovarmos gerações, como se isso já não acontecesse desde 1981. É verdade: a austeridade restringiu subsídios e carregou impostos. Sim, perdemos poder de compra, mas menos do que no ajustamento de 1983-1985, e muito menos do que se já estivéssemos a ser pagos em moeda desvalorizada. Sim, há menos beneficiários do Rendimento Social de Inserção. Mas sem a austeridade, não teria havido ajuda externa e não haveria hoje RSI, ou melhor, talvez houvesse, mas com valores equivalentes a não haver.

Se o neo-liberalismo pretende, como a esquerda diz, encerrar o Estado social, pôr os trabalhadores a pão e água, e impor uma ditadura, então o ajustamento frustrou os neo-liberais: manteve-nos na Europa democrática, ressalvou a maior parte do nosso poder de compra (segundo o INE, os nossos rendimentos estão agora ao nível de 2007, o que, convenhamos, não era o de 1975), e salvaguardou a estrutura do Estado social, com os seus programas principais. Mais: reforçou, até, o peso fiscal do Estado, o que, segundo os manuais, não é exactamente liberal. O programa de ajustamento negociado com a troika poupou assim a sociedade portuguesa a uma transição brusca, como a que teria ocorrido se tivesse faltado financiamento externo à economia. No entanto, os altifalantes do anti-capitalismo nacional não gostam. Pelos vistos, não lhes importa a democracia, o Estado social, e o poder de compra. Querem ver que são eles os neo-liberais?»

sábado, 7 de junho de 2014

Possidónio Cachapa (citação)



«Todos os jornais falam da política como falam da bola: por bitaites, quem joga, quem fica no banco, quem vai rematar os penaltis... Ninguém pensa para lá disso, globalmente, acima das tricas, acima do recreio em que os meninos trocam cromos. Os jornais não são a escola, de facto. E muitos dos que os fazem passaram por ela escorregando pelas paredes, ou pior, escutando apenas as vozes desesperadas de quem já só pede que fiquem sossegados.
Flash News: é possível pensar as sociedades para lá dos nomes que se esborracham contra as objectivas. Saber e dizer que estas baratas tontas que correm histericamente pelos corredores das sedes partidárias, das assembleias, de São Bento, são como Jesus, mas no mau sentido: caminham sobre a babugem das ondas achando que nadam as profundezas do Estado. Por uma vez, gostaria de ver escrito coisas que não fossem sobre as cuecas dos ronaldos de pacotilha que elegemos, vamos eleger, ou odiamos porque têm um cabelinho à mete-nojo ou o olhar teimoso de um metalúrgico que não acredita na bondade dos outros.
Por uma vez, ficaria contente, de ver o país que se expressa a fazê-lo levemente acima do esforço de postar um gatinho a tocar piano.
Por uma vez, gostaria de sentir que pertenço a um país que pensa de vez em quando...»

Possidónio Cachapa (texto publicado hoje no Facebook)

terça-feira, 6 de maio de 2014

Balanço cauteloso



Há três anos deixei aqui expressa a minha satisfação pelo conteúdo do memorando de entendimento entre a troika (UE, BCE e FMI) e o Estado português, que elencava pormenorizadamente os ajustamentos a efectuar na sua estrutura, e que eram condição para que a ajuda financeira fosse disponibilizada. Do mesmo modo, expressei agrado pelo conteúdo do programa do governo, uma vez que reflectia o conteúdo daquele. Deixei também alguns apontamentos sobre a minha incredulidade face a reacções colectivas de alguns cidadãos, porque me era, e continua a ser, difícil entender como estavam e estão completamente a leste da verdadeira situação do país. E como não gosto de me repetir, deixei de escrever sobre o assunto, interessando-me apenas em acompanhar e analisar se o governo estava a cumprir o estipulado no referido memorando e respectivas actualizações, e tanto me tem bastado, apesar dos obstáculos que foram surgindo nestes três anos de ajustamento que agora se completam. Aliás, muitos mais obstáculos surgirão, porque o que se fez não é nada comparado com o que o país precisa.

Não foi Gabriel García Marquez, homenageado recentemente devido à sua morte, quem disse, depois de ter estado em Portugal em 1975, que “Portugal não produzia nada, senão portugueses” (e actualmente, nem isso, digo eu)? E nem sei se ele sabia alguma coisa sobre a qualidade de muitos desses portugueses que ainda “produzíamos”, mas admito, dadas as características da sua literatura, que até tenha gostado do nosso lado fantasioso. Só que esse lado é incompatível com a construção diária de um país, de qualquer país, e mais ainda com a reconstrução de um país, e é isso que é necessário fazer com o nosso. Porque uma coisa é construir bem, seja o que for, desde o início, outra coisa é desfazer o que está errado e substituí-lo por algo melhor, dificuldade que se acentua se esse país tiver séculos de História, ao longo dos quais muitos dos seus cidadãos, imitando muitos dos seus dirigentes, o que acumularam foram vícios, que conduziram a dívidas, e foram estas que nos levaram, em poucas décadas, a três resgates de bancarrota iminente.

Conhecendo-nos como nos conhecemos, ou, mais prosaicamente, sabendo-se o que a casa gasta, não li, nem ouvi uma única proposta séria para que a sociedade debatesse que país quer, quais as funções que o Estado deve desempenhar e quais os assuntos onde o Estado nem se deve meter, etc., etc. Do que se fala a toda a hora é sobre uma proposta de reforma do Estado a apresentar pelo governo, governo que, nos últimos três anos, tem estado imerso no memorando 24 horas por dia, tal a quantidade de itens que ele contém para cumprir nos prazos estipulados. Mas como é que isso seria possível? Além do mais, a reforma do Estado não é assunto de governos, mas de toda a sociedade, e estes três anos podiam ter servido também para se fazer esse debate e não estar à espera que um governo tome essa iniciativa. A única “iniciativa” de qualquer governo deverá ser a de gerir com parcimónia o dinheiro dos contribuintes sem nunca esquecer que o mundo em que vivemos é real e que todas as acções têm consequências. Quem gostar de fantasiar que fantasie, desde que não faça parte de governos ou de oposições responsáveis.

Não abordei o modo como vamos sair do programa de ajustamento, porque não lhe atribuo grande importância, dado que, e mais uma vez, sabendo o que a casa gasta, felizmente temos o tratado orçamental que nos obriga a mantermo-nos nos carris, além da vigilância dos nossos credores. Sobre a questão da perda ou recuperação da nossa soberania só me posso rir, já que a partilhámos quando aderimos à comunidade, agora União Europeia, e porque, como escrevi noutro texto, nenhuma pessoa ou país sobreendividado se pode considerar livre. A única coisa soberana que temos é a dívida – a dívida soberana, resultado de erros também soberanos.

© Maria Paias
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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Vasco Graça Moura, "Zeus e o destino"



porque ele tem a sua morte anunciada,
porque de pentesileia o trespassou
o olhar agonizante e eu o canto
fugaz e reiterado como um brilho no bronze,
porque este é um dos meus versos mais amados
da ilíada quando, no canto sexto, helena
de tróia exclama a lamentar-se "zeus
deu-nos um destino infeliz para que, mais tarde,
os homens nos cantassem", a desoras
não sei se estas certezas nos trarão
como as marés acasos hesitantes,
nocturnos objectos de desejo,
coisas nenhumas e pequenos nadas,
mas sei de captações contraditórias,
harpas de sombras íntimas tocando
o mais verbal da vida, o nervo dela.
é quando se transforma, quente e denso,
o coração num desafio ao mundo
e tudo leva a tudo e transfiguram-se
a memória, as imagens, o real inesperado.


1. Zeus e o destino, in Sombras com Aquiles e Pentesileia, Quetzal, 1999 

Vasco Graça Moura (3/1/1942 – 27/4/2014)

sábado, 26 de abril de 2014

Entrevista a Mendo Henriques



«Mendo Henriques: 40 years after April 25th the revolution still goes on – Interview
 By Carolina Matos, Editor (*)

Mendo Henriques is an associate professor at the Catholic University of Lisbon, Portugal. His many areas of interest include Political Philosophy, Philosophy of Consciousness, Applied Philosophy, Ethics, History, Citizenship, Literature, Governance, Religion and Education.

He has written extensively on Fernando Pessoa, Bernard Lonergan, and Eric Voegelin and is the author and co-author of many books, research, monographs and articles published in Portugal, Brazil, Spain and France.

A former advisor of the National Defense Institute and director of GEPOLIS (Gabinete de Estudos Ético-Político-Religiosos; UCP), Mendo Henriques is an opinion leader and political blogger devoted to issues of citizenship awareness, civic activism and volunteerism.

He is the founder and director of the Instituto da Democracia Portuguesa, a Portuguese think tank, and publishes in a variety of Internet sites dedicated to civics, namely Instituto da Democracia Portuguesa, Clubes da Cidadania, and  Colóquios Lonergan.

In 2013, he co-authored with Nazaré Barros Olá, Consciência!a “think-for-yourself” book devoted to the philosophy of conscience and critical thinking. The book, published in Portugal and Brazil, is now being adapted into English by Henrique Rodrigues for publication in the United States.

Mendo Henriques holds a Bachelor Degree and Master’s Degree in Philosophy from the University of Lisbon, a doctorate from by the Catholic University of Lisbon. He has done pre-doctorate studies at the Hoover Institution, CA/USA, and at Geschwister-Scholl Institut, Munich, FRG.

In this interview for the Portuguese American Journal, he reflects on contemporary Portugal, 40 years after the Carnation Revolution of 1974, on his thinking and his vision for the future.

Portugal is celebrating 40 years of freedom and democracy.  Looking back, was the 25th of April revolution worth it?

All indicators before and after April 25thpoint to this: the Portuguese state was perceived as being rich but we were poor and forced to migrate; the state was sovereign but we had no freedoms; we held a colonial empire but were not able to conquer the minds and hearts of those we colonized. Against this backdrop the revolution was well worth as it freed us to make new choices. What we have chosen, however, has been tested by capitalism. Capitalism is capable of creating the best life conditions when the wealth created better serves the collective welfare; or the worst when the created riches are abused by a minority, as explained by Thomas Piketty and illustrated by the Gini Coefficient about inequality. What we do in Portugal today is contingent to European and global answers. Yet, we should not accept bad policies forced on us due to the ignorance or greed of those in government.

The revolution had three objectives: decolonize, democratize and develop.  From your perspective, were the ideals of the revolution achieved?

The ideals of the revolution were achieved. Yet, the world has changed greatly in the last 40 years and new challenges have emerged. Decolonization: despite the long civil wars in Angola and Mozambique, after 1974, these African nations have remained linked to Portugal by affection and economic interests.  What we now call “Lusofonia” has been the appropriate answer to current challenges.  Democratization: a “formal” democracy has been established and guaranteed.  However, to achieve a “real” democracy we are in need of new political parties in order to counteract the oligarchic impositions that impoverished us.  Development: the country was finally provided with progress tools. However, we need to support those who use these resources but have been penalized by austerity policies.  I think that the civil society will produce new rulers with the ability to face our current problems.  The revolution still goes on.