«Quando eu era miúdo, os jantares de Natal não eram pacíficos. Não sendo uma família numerosa, éramos bastantes para reunir à mesa eleitores dos quatro partidos que então tinham representação parlamentar. Entre nós, como em tantas outras famílias, havia um tio reaccionário. Enquanto os restantes, mesmo com opiniões diferentes,
procuravam moderar o tom do debate quando os ânimos aqueciam, ele tinha prazer em provocar o desconforto geral.
Afirmava sem hesitar que os “pretos são burros”, que os “comunistas merecem ser presos e torturados”, que os “ladrões deviam ter as mãos amputadas”, que os “incendiários têm de ser enforcados em praça pública”, e outras diatribes do género. Muitas vezes suspeitei que ele não acreditava em tudo o que dizia. Tratava-se, acima de tudo, de uma estratégia de provocação para criar mau ambiente. Gerava incómodo por prazer maldoso, levando a paciência alheia para lá do limite. E conseguia o que queria, invariavelmente.
Lembrei-me dele esta semana, ao ouvir as reacções dos dirigentes do Chega após um incidente trágico. Um polícia matou um cidadão negro, numa zona desfavorecida, em circunstâncias pouco claras. De imediato, André Ventura veio pedir que o agente fosse condecorado. Acrescentou que os agentes deviam ter mais liberdade para disparar a matar. Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, afirmou que se a polícia matasse mais pessoas haveria ordem no país. Um assessor do partido congratulou-se com a morte de um “eleitor do Bloco”. A ideia de um “tiro ao alvo” por parte de agentes de autoridade – tão absurdo e grotesco quanto isso – foi exposta sem pudor, em afirmações impróprias para qualquer responsável político.
Como o meu tio à mesa de Natal, estes dirigentes não têm o propósito de esclarecer ou convencer, apenas de provocar. O objectivo é obter espaço nos media, destaque nas redes sociais e ruído mediático que torna difícil aos cidadãos discernirem entre o debate real e a provocação deliberada. E conseguem.
Mas há uma diferença de escala entre o meu tio e estes provocadores profissionais. Tudo o que ele conseguia era estragar uma noite de convívio familiar. Estes novos populistas vão muito mais além: destroem a coesão social e ameaçam a democracia com uma retórica que banaliza o discurso violento, legitima a agressão e divide as pessoas entre os que são “a favor da ordem” e todos os outros, colocados de imediato na posição de “inimigos” ou “ameaças”.
A estratégia é simples e antiga, mas a sua eficácia na era digital é devastadora. Demonizam inimigos internos ou externos, normalmente minorias étnicas, imigrantes ou grupos de adversários ideológicos. Em vez de reconhecerem a complexidade dos desafios sociais e políticos contemporâneos, simplificam tudo apontando o dedo a grupos que já se encontram vulneráveis ou estigmatizados, identificando-os como uma ameaça e como causa de todos os problemas, polarizando assim o debate e alimentando o medo, em vez de contribuírem para soluções construtivas.
Desprezam as instituições, acusando os tribunais, a imprensa e “os políticos” (como se eles não o fossem) de estarem ao serviço de interesses obscuros (como se o financiamento das suas campanhas eleitorais tivesse alguma vez sido transparente). Reivindicam a “liberdade” para dizer o que lhes dá na gana, como se a liberdade nada tivesse a ver com responsabilidade.
A provocação incessante, já sabemos, é a estratégia desta direita radical. Tal como o meu tio reaccionário ficava satisfeito com o desconforto alheio, estes dirigentes provocam para fazerem notícia, sabendo que o sistema mediático é a sua caixa de ressonância. Na ausência de mecanismos de responsabilização, conseguem transmitir ideias extremas, quase sempre absurdas, que gradualmente são normalizadas no espaço público.
A provocação incessante, já sabemos, é a estratégia desta direita radical. Tal como o meu tio reaccionário ficava satisfeito com o desconforto alheio, estes dirigentes provocam para fazerem notícia, sabendo que o sistema mediático é a sua caixa de ressonância. Na ausência de mecanismos de responsabilização, conseguem transmitir ideias extremas, quase sempre absurdas, que gradualmente são normalizadas no espaço público.
O discurso do Chega é tão ou mais perigoso quando promove a ideia de que a polarização constante entre forças políticas é, em si, a essência da democracia – quando a sua essência é, na verdade, o respeito pela diversidade e a resolução pacífica das dissensões.
Aqui como em quase tudo o resto, a estratégia do Chega não tem nada de original, limita-se a imitar as manobras trumpistas, bolsonaristas e de todos os que os seguiram, um pouco por todo o mundo.
Ao colocarem os seus opositores como inimigos dos “portugueses de bem” (que eles próprios não são, qualquer que seja a definição), desvirtuam o conceito de comunidade política e degradam o papel do debate democrático. Os líderes do Chega sabem-no, mas pouco lhes importa. A sua visão é de curto prazo. Não têm um projecto para o futuro, apenas um propósito imediato: captar votos através do ressentimento, do medo e da divisão.
É tempo de percebermos que o Chega é mesmo uma ameaça ao sistema democrático e ao Estado de direito. Utiliza a liberdade de expressão não para enriquecer o debate, mas para o esvaziar, substituindo-o pela gritaria, pelo insulto e pela agressão. Em última análise, ao banalizar o discurso de ódio, coloca as democracias perante um dilema – como responder à provocação sem abdicar dos princípios de abertura e liberdade que definem o próprio sistema democrático.
Quando não são travados, partidos como este destroem as instituições que garantem a liberdade. É por isso fundamental que todos – cidadãos, jornalistas, instituições – estejam atentos e que se recusem a ser cúmplices deste jogo perigoso.
Com as declarações que fizeram na sequência de uma tragédia, sem esperar sequer pelo esclarecimento das circunstâncias em que ocorreu, os dirigentes do Chega ultrapassaram todas as fronteiras da decência.
O meu tio nunca passou de um provocador de jantares de Natal. O que os dirigentes do Chega fazem vai muito além disso. A sua missão é minar a confiança nos princípios que sustentam as sociedades livres e plurais, abrindo caminho a um futuro sombrio em que as diferenças não são respeitadas, mas silenciadas. A queixa-crime contra André Ventura e Pedro Pinto, da iniciativa de um conjunto vasto de cidadãos, é a expressão, urgente e necessária, da intolerância democrática face ao oportunismo e à irresponsabilidade.»