terça-feira, 6 de maio de 2014

Balanço cauteloso



Há três anos deixei aqui expressa a minha satisfação pelo conteúdo do memorando de entendimento entre a troika (UE, BCE e FMI) e o Estado português, que elencava pormenorizadamente os ajustamentos a efectuar na sua estrutura, e que eram condição para que a ajuda financeira fosse disponibilizada. Do mesmo modo, expressei agrado pelo conteúdo do programa do governo, uma vez que reflectia o conteúdo daquele. Deixei também alguns apontamentos sobre a minha incredulidade face a reacções colectivas de alguns cidadãos, porque me era, e continua a ser, difícil entender como estavam e estão completamente a leste da verdadeira situação do país. E como não gosto de me repetir, deixei de escrever sobre o assunto, interessando-me apenas em acompanhar e analisar se o governo estava a cumprir o estipulado no referido memorando e respectivas actualizações, e tanto me tem bastado, apesar dos obstáculos que foram surgindo nestes três anos de ajustamento que agora se completam. Aliás, muitos mais obstáculos surgirão, porque o que se fez não é nada comparado com o que o país precisa.

Não foi Gabriel García Marquez, homenageado recentemente devido à sua morte, quem disse, depois de ter estado em Portugal em 1975, que “Portugal não produzia nada, senão portugueses” (e actualmente, nem isso, digo eu)? E nem sei se ele sabia alguma coisa sobre a qualidade de muitos desses portugueses que ainda “produzíamos”, mas admito, dadas as características da sua literatura, que até tenha gostado do nosso lado fantasioso. Só que esse lado é incompatível com a construção diária de um país, de qualquer país, e mais ainda com a reconstrução de um país, e é isso que é necessário fazer com o nosso. Porque uma coisa é construir bem, seja o que for, desde o início, outra coisa é desfazer o que está errado e substituí-lo por algo melhor, dificuldade que se acentua se esse país tiver séculos de História, ao longo dos quais muitos dos seus cidadãos, imitando muitos dos seus dirigentes, o que acumularam foram vícios, que conduziram a dívidas, e foram estas que nos levaram, em poucas décadas, a três resgates de bancarrota iminente.

Conhecendo-nos como nos conhecemos, ou, mais prosaicamente, sabendo-se o que a casa gasta, não li, nem ouvi uma única proposta séria para que a sociedade debatesse que país quer, quais as funções que o Estado deve desempenhar e quais os assuntos onde o Estado nem se deve meter, etc., etc. Do que se fala a toda a hora é sobre uma proposta de reforma do Estado a apresentar pelo governo, governo que, nos últimos três anos, tem estado imerso no memorando 24 horas por dia, tal a quantidade de itens que ele contém para cumprir nos prazos estipulados. Mas como é que isso seria possível? Além do mais, a reforma do Estado não é assunto de governos, mas de toda a sociedade, e estes três anos podiam ter servido também para se fazer esse debate e não estar à espera que um governo tome essa iniciativa. A única “iniciativa” de qualquer governo deverá ser a de gerir com parcimónia o dinheiro dos contribuintes sem nunca esquecer que o mundo em que vivemos é real e que todas as acções têm consequências. Quem gostar de fantasiar que fantasie, desde que não faça parte de governos ou de oposições responsáveis.

Não abordei o modo como vamos sair do programa de ajustamento, porque não lhe atribuo grande importância, dado que, e mais uma vez, sabendo o que a casa gasta, felizmente temos o tratado orçamental que nos obriga a mantermo-nos nos carris, além da vigilância dos nossos credores. Sobre a questão da perda ou recuperação da nossa soberania só me posso rir, já que a partilhámos quando aderimos à comunidade, agora União Europeia, e porque, como escrevi noutro texto, nenhuma pessoa ou país sobreendividado se pode considerar livre. A única coisa soberana que temos é a dívida – a dívida soberana, resultado de erros também soberanos.

© Maria Paias
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