segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

João César das Neves - "Quase boas ideias"

«Com o Governo em cuidados paliativos, há que preparar a autópsia. As gerações futuras não podem desperdiçar as lições preciosas de tantas experiências desastradas. Tolices foram muitas e variadas; a mais paradoxal é a "quase boa ideia". O Governo de José Sócrates apresentou múltiplos projectos, programas e sugestões que pareciam mesmo excelentes. Não eram.
Todos sabemos que foi feita uma quase reforma da administração pública, reestruturações hesitantes na saúde e educação, mudanças parciais na Segurança Social. Em todos os casos faltou sempre um bocadinho.
O mais espantoso porém foram os sucessos proclamados. A 17 de Janeiro, na Cimeira Mundial de Energia no Abu Dhabi, o senhor primeiro-ministro disse que Portugal é o "segundo país da Europa em energia eólica... líder mundial nesta área graças a reformas e investimentos nos últimos seis anos" (Lusa). Se tem assim tantas vantagens, porque hesitam os países ricos? Será que são todos parvos? Ou seremos nós os parolos que se atiraram à maluca para uma técnica da moda, sem pesar custos, medir inconvenientes, ponderar alternativas? A resposta está na monstruosa factura e no enorme défice tarifário que o Orçamento escondeu e agora rebenta. Mas parecia uma ideia tão boa!
O caso mais brilhante está nas tecnologias da informação, onde se apostou a fundo. Os custos do e-government foram enormes. Os resultados viram-se, por exemplo, na eleição presidencial. O sofisticado cartão de cidadão permite imensas funcionalidades, como votar. Desde que os computadores funcionem. Quando falham, como no dia 23 de Janeiro, então o velhinho cartão de eleitor, certamente o mais humilde dos documentos e já extinto desde 2008, foi muito melhor que a tecnologia avançada. Quando algo corre mal, a quase boa ideia é... insistir na tolice! A forma de o Governo resolver a trapalhada foi eliminar de vez o número de eleitor. Assim, no próximo sufrágio ninguém será favorecido pelos cartões de papel, garantindo igualdade dos cidadãos.
Se o percalço eleitoral é ridículo, as coisas ficam sinistras ao falar do fisco. Em nome da eficiência, os contribuintes são agora obrigados a apresentar electronicamente declarações e até recibos verdes. Compreendem-se as vantagens. O que é inaceitável é a imposição. Regressámos ao papel selado, agora virtual. A forma séria seria criar incentivos ao uso da Net, por exemplo impondo custos ao papel. Mas a arrogância fiscal não sabe o que isso seja. Assim deixa de ser um serviço público, reservando o direito de admissão. É intolerável que uma instituição nacional se recuse a lidar com os contribuintes pelos meios comuns, forçando-os a despesas adicionais para cumprirem os deveres. Que, para mais, permitem novas exigências que prejudicam os cidadãos. Agora roubam o benefício fiscal às facturas sem número de contribuinte impresso.
Pior que tolice e agressão, as tecnologias podem tornar-se infâmia quando prejudicam os pobres fingindo promover a justiça. Em Agosto passado foi anunciado: "Quatrocentas mil famílias beneficiárias de prestações sociais, como o rendimento social de inserção, o abono de família ou o subsídio social de desemprego, têm de fazer a prova de rendimentos através da página de Internet da Segurança Social.... Caso não façam a prova de rendimentos, os beneficiários podem ver estes subsídios cortados" (RTP 28/08/2010). Este mês começam a ser perdidos os apoios. Não são precisos comentários. Atrás da tecnologia já nem sequer há vergonha!
Podíamos continuar a lista das "quase boas ideias" como o Magalhães, plano tecnológico, TGV, novo aeroporto e tantos projectos que iam lançar Portugal na modernidade. O Governo, enquanto arruína o Orçamento, endivida o País, estrangula a economia, adia ou atrapalha reformas estruturais, orgulha-se de algumas ideias onde aposta a sua reputação. O mal foi sempre que a finalidade nunca era resolver problemas, mas o espalhafato da própria tecnologia. Não se queria melhorar a situação, apenas brilhar com soluções aparatosas. Todas quase boas ideias.»

Texto publicado no DN

Montaigne - "Não é para alarde que a nossa alma deve desempenhar o seu papel"

«Quem só é homem de bem porque os outros o ficarão a saber e porque o estimarão mais depois de o ficarem a saber, quem só quer agir bem,  na condição da sua virtude chegar ao conhecimento dos homens, não é homem de quem possamos obter grandes serviços. [...] Não é para alarde que a nossa alma deve desempenhar o seu papel; é dentro de nós, no íntimo, aonde outros olhos não chegam excepto os nossos: ali ela nos protege do temor da morte, das dores e mesmo da desonra; tranquiliza-nos contra a perda dos nossos filhos, dos nossos amigos e das nossas fortunas, e, quando a ocasião se apresenta, também nos conduz para os acasos da guerra. Não por algum proveito, mas pela honra da própria virtude (Cícero). Esse proveito é muito maior e muito mais digno de ser desejado e esperado do que as honras e a glória, que são apenas um julgamento favorável que fazem de nós.
É preciso seleccionar de uma nação inteira uma dúzia de homens para julgar sobre uma jeira de terra; e entregamos o julgamento das nossas inclinações e das nossas acções – a matéria mais difícil e mais importante que existe – à voz do povo e da turba, mãe da ignorância, da injustiça e da inconstância. Será razoável fazer a vida de um sábio depender do julgamento dos insensatos? O que é mais insensato, quando não te importas com os homens tomados individualmente, do que lhes dares importância quando estão juntos? (Cícero). Quem visa a agradar-lhes nunca o consegue; esse é um alvo que não tem forma nem solidez. Nada mais sem valor que as opiniões da multidão (Tito Lívio). Demétrio dizia zombeteiramente, sobre a voz do povo, que não levava mais em consideração a que lhe saía por cima do que a que lhe saía por baixo. Aquele outro diz ainda mais: Quanto a mim, considero que uma coisa, mesmo quando não é torpe, passa a sê-lo quando é louvada pela multidão. (Cícero).»

Michel de Montaigne – Ensaios

(28/02/1533-13/09/1592)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Bertolt Brecht - "A solução"

Após a insurreição de 17 de Junho
O secretário da União dos Escritores
Fez distribuir panfletos na Alameda Estaline
Em que se lia que, por culpa sua,
O povo perdeu a confiança do governo
E só à custa de esforços redobrados
Poderá recuperá-la. Mas não seria
Mais simples para o governo
Dissolver o povo
E eleger outro?

Bertolt Brecht, Poemas, Editorial Presença, 1976, p.82

Nota: Pareceu-me adequada esta publicação depois do meu texto de ontem. Talvez porque, por aqui, também me parece andar tudo às avessas.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Que venham por bem

Há vários dias que ouço as mais diversas "personalidades", de diversos países, afirmarem peremptoriamente que Portugal não necessita de ajuda externa para ultrapassar o problema da dívida. Como o único problema do país não é a dívida externa astronómica, embora pareça, porque é só nela que se fala, não me admiraria que, depois de todas estas afirmações de que o país não precisa de ajuda (aqui vou fingir que o BCE não tem comprado dívida soberana portuguesa), ela se impusesse, e até muito em breve, porque não vislumbro outra forma de intervenção que obrigue à desestatização da sociedade portuguesa, tendo presente o leque partidário que temos. E sem essas reformas estruturais, o país não vai a lado nenhum. Do mesmo modo que não temos uma economia digna desse nome, também não temos uma sociedade civil esclarecida, actuante, com voz activa e com peso político,  porque estatizada.
Como as moções de censura ao governo não vêm alterar significativamente nada, caso alguma fosse aprovada, pelas razões que referi acima, também não me admiraria que fosse o Presidente a dissolver a Assembleia da República para, pelo menos, interromper a degradação que se acentua a cada dia também no que se refere ao "nível" do discurso político, que é baixíssimo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"omnia fui, nihil expedit"

Severo
«Quanto mais contemplo o espectáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingénita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação que a todos, que reflectem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas - tudo isso me parece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo "Já sei tudo", ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: "omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena".»

Fernando Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego, 3.ª edição, Assírio & Alvim, p. 138/9

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Palestra "A Consultoria Filosófica segundo Jorge Dias" na UCP a 25 de Fevereiro

SERÁ QUE TODO O LICENCIADO EM FILOSOFIA ESTÁ FADADO AO ENSINO OU À INVESTIGAÇÃO?
NÃO HAVERÁ OUTRA SAÍDA PROFISSIONAL?


Convidamos todos os interessados nestas questões a deslocarem-se à UCP (Sala dos Descobrimentos - 1º Piso do Edifício da Biblioteca)  no próximo dia 25 de Fevereiro (6a-feira), entre as 18:30 e as 20:30, para assistirem à palestra «A Consultoria Filosófica segundo Jorge Dias».
Seguir-se-á um debate.
A entrada é livre.

Jorge Dias é licenciado em Filosofia na vertente Ético-Política pela UCP (1998)  e Pós-Graduado em Educação para a Cidadania (1999). É actualmente doutorando na Universidade Nova de Lisboa e dirige desde 2008 o Gabinete Project@ – Consultoria Filosófica.

Entre as suas publicações, destacam-se:
Pensar Bem, Viver Melhor. Filosofia Aplicada à Vida (Lisboa, Ésquilo e APAEF, 2006)
(co-autor) Felicidade ou Conhecimento? (Sevilha, Doss Ediciones, 2009)
(co-autor) Ideia e Projecto. A Arquitectura da Vida (Madrid, Visión Libros, 2009)

PROGRAMA:

18h30 – Palestra “A Consultoria Filosófica segundo Jorge Dias”

20h00 – Questões e Debate: Jorge Dias, Marisa Cruz e Carlos Morujão

20h15 – Venda de Livros

20h30 – FIM

PALESTRA:

1. Da preocupação pelo Sentido à necessidade de um Projecto de Vida;

2. 5 mitos e 5 ilusões sobre a CF;

3. O desespero pela Utilidade;

4. A Filosofia do Conflito;

5. Condições para o (re)nascimento da Filosofia na actualidade;

6. Dos Problemas aos Métodos;

7. Competências do Consultor Filosófico;

8. O método PROJECT@;

9. O Consultório do EU – por Marisa Cruz;

10. Conclusões e debate;

A organização desta iniciativa resulta de uma parceria entre a Área Científica de Filosofia da FCH-UCP e o Gabinete Project@.
Jorge Dias












Também AQUI

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Entre Lisboa e o Cairo

Depois do debate de hoje na Assembleia da República, mais evidente ficou o que escrevi no texto anterior sobre o que vai ocupar os opinadores nas próximas semanas. Agora com mais um elemento para ajudar à festa, que é a declaração de Francisco Louçã, do Bloco de Esquerda, e a moção de censura ao Governo que apresentará daqui a um mês, quando o Presidente da República já tiver tomado posse para o segundo mandato. E embora esta moção seja mais uma questão de antecipação ao PCP (que, a meu ver, não ia apresentar moção nenhuma), mas que permite ao B.E. dizer que ainda mexe depois de quase nem se ter dado por ele desde as presidenciais. Por outras palavras, não é o país que lhes interessa, mas a visibilidade que podem ter ou não, e qualquer pretexto serve para a conseguirem. Uma coisa interessante tem, contudo, de sair disto, e é a definição, de uma vez por todas, tanto do PSD como do CDS-PP.

E agora vou para o Cairo para saber se, afinal, Hosni Mubarak, já foi ou se fica, e em que circunstâncias. E se for para a Alemanha, desde já agradeço à senhora Merkel por não começar qualquer "jogo de empurra", que seria contraproducente e constituiria uma desilusão para os cidadãos egípcios.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O oráculo

Há décadas que ouço esta figura singular do comentário político, económico, social, cultural, desportivo, nacional e internacional, (porque ele vai a todas) – que é o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Assim sendo, tenho obrigação de conhecer os argumentos, por vezes tortuosos, das suas análises e as respectivas conclusões.
O que me aborrece verdadeiramente é pensar que, se não fosse ele a transmitir-nos “certos jogos políticos”, nós, pobres ignorantes, não chegávamos lá. Foi o que fez ontem no seu comentário semanal na TVI, sobre a posição favorável do Ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão, à redução do número de deputados na Assembleia da República, como se, os mais atentos, não tivessem visto logo que aquilo era um “fait-divers” para entreter a comunicação social e dar alguma folga ao Primeiro-Ministro e ao Governo.
Depois abordou a entrevista que Jerónimo de Sousa deu a Maria Flor Pedroso na sexta-feira passada, na Antena 1, e que ouvi em directo, mais concretamente sobre a possibilidade de o PCP viabilizar uma moção de censura que fosse apresentada pelo PSD. Aliás, as declarações de Jerónimo de Sousa tinham-me merecido atenção idêntica à que dei às de Jorge Lacão. Mas Marcelo pegou nelas e disse que, com isso, “o governo já está morto e só falta a certidão de óbito”, que seria passada quando a tal moção de censura fosse apresentada e aprovada na Assembleia da República.
Perante isto, também vou fazer a minha previsão, com base no que conheço da mentalidade de muitos portugueses, correndo, embora, o risco de também cair no ridículo.
Não me admiraria que, perante o que disse esta espécie de oráculo, que é o Prof. Marcelo, toda a comunicação social, analistas, politólogos, bloguistas, se atirassem ao tema durante as próximas semanas e nem se dessem ao trabalho de pensar que, do mesmo modo que as declarações de Jorge Lacão serviram para aliviar a pressão sobre o Governo, as do Prof. Marcelo servem para repor essa pressão e, ao mesmo tempo, dar mais visibilidade ao PSD e às suas eventuais virtudes numa nova governação, criando-se uma onda tal em que já nem seria necessária qualquer moção de censura uma vez que a comunicação social se encarregaria de fazer todo o trabalho de desgaste, e com os índices de popularidade que o Governo tem actualmente, nem será necessário esforçarem-se muito. O resto ficaria para o senhor de Belém.
Estes jogos de poder sempre existiram e continuarão a existir. Eu vejo-os como “peças de teatro” e, ao teatro, só vai quem quer ver a peça, não quem já a viu inúmeras vezes.