quinta-feira, 29 de julho de 2010

As contradições da UE sobre OGM - Não se cultivam, importam-se!

Numa reunião, no final do mês de Junho, os Ministros da Agricultura dos 27 Estados membros da União Europeia (UE) não conseguiram uma maioria de votos nem a favor nem contra a importação de seis espécies de milho geneticamente modificado (OGM) para alimentação humana e animal, o que, segundo os regulamentos da UE, impõe que seja a Comissão Europeia a decidir. E esta decidiu pela importação desses produtos, depois de ouvir a Agência Europeia de Segurança Alimentar (AESA ou EFSA) que avaliou positivamente os seis tipos de milho OGM.
Depois de anos de estudos e de lutas e em que se acordou, recentemente, que apenas poderiam ser cultivados na Europa a batata Amflora e o milho MON810, ambos OGM, a Comissão Europeia sai-se com esta autorização de importação de seis espécies de milho OGM e, ainda por cima, a autorização é válida por um período de dez anos!
Esta decisão foi já criticada pela França e pela Alemanha, que se opõem aos OGM, e por entenderem que este passo pode levar, no futuro, à cultura destes produtos na Europa. Tudo o que a Comissão propôs, foi a modificação destes regulamentos, para não ficar com toda a responsabilidade neste tipo de resoluções.
E pergunto eu: do mesmo modo que a Comissão decidiu pelo "sim" à importação destes produtos, não podia ter decidido pelo "não"? Se não havia uma posição maioritária dos Ministros da Agricultura nem para um lado nem para o outro!

Fonte: RFI

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Adesão da Islândia à UE - Sim!, Não!, Talvez...

Quem pensasse que os islandeses não tinham outra saída para a sua própria crise financeira de há um ano senão a adesão à União Europeia (UE), talvez seja tempo de conhecerem um pouco melhor a fibra dos 300.000 habitantes daquela ilha. Aliás, a adesão da Islândia à UE nem implica um processo muito complicado, uma vez que há mais de quinze anos que já participa no mercado comum, faz parte integrante do espaço Shengen de livre circulação de pessoas e aplica quase três quartos das leis que a UE julga necessárias a uma adesão.
Então por que é que a tendência do "sim", que se verificava há um ano, se transformou num "não" para 60% do islandeses questionados agora? É que tiveram oportunidade de ver o modo como a UE lidou com a crise global, em particular a zona euro, tendo a própria crise grega feito com que os islandeses começassem a duvidar da sua fé no euro. Fé essa completamente perdida quando a Grã-Bretanha e a Holanda exigiram aos contribuintes islandeses que indemnizassem os cidadãos britânicos e holandeses afectados pelo naufrágio da Banca islandesa Icesave, o que recusaram através de referendo por 93,3%. E é também este episódio que está na origem do actual "desamor" entre a Islândia e a UE.
Por outro lado, a Islândia tem, neste momento, um governo de coligação entre social-democratas e verdes, sendo os primeiros favoráveis à adesão e os segundos nem por isso. Assim, a maioria no Parlamento está de acordo com a continuação das negociações mas não sobre a adesão, o que torna a posição da primeira-ministra social-democrata Johanna Sigurdardottir, muito delicada.

Na foto: Johanna Sigurdardottir
Fonte: RFI

domingo, 25 de julho de 2010

Acessibilidade para todos = Inclusão

Com um dia de atraso, por motivos de força maior, junto-me à comunidade BloggersUnite no sentido de chamar a atenção para o muito que ainda há a fazer na educação para a cidadania, neste caso concreto para que se respeitem os direitos dos cidadãos com deficiência, permanente ou temporária, e cada um de nós não está livre de passar por essa experiência.
Como é habitual, a legislação portuguesa é boa, também nesta matéria, mas o seu problema é sempre o da sua implementação no terreno, e é aí, no dia-a-dia, que as pessoas com mobilidade reduzida, quer seja em cadeiras de rodas, com o auxílio de canadianas ou de bengala no caso dos invisuais e amblíopes, que a falta de rigor e de medidas expeditas mais se faz sentir, pois qualquer pequeno obstáculo pode representar um perigo ou mesmo algo de intransponível para esses cidadãos.
Por outro lado, o nosso Código da Estrada é já bastante severo no que respeita a coimas para os condutores que estacionem os veículos em cima dos passeios e nos lugares reservados a deficientes, estando sujeitos a reboque além da coima. No entanto, parecem não ser suficientemente dissuasoras desse comportamento de absoluta falta de respeito para com as pessoas com deficiência.
No Concelho onde vivo é com agrado que vejo os passeios rebaixados junto às passadeiras para peões, rampas amplas e com pouca inclinação para acesso a estabelecimentos comerciais, mas também existe ainda um Centro de Saúde com três pisos sem elevador para ninguém, há mais de trinta anos, e que só agora a Autarquia parece ter condições de construir um de raiz adequado à função e para substituir este.
Como não tenho um vídeo que possa ilustrar o que ainda há a fazer nesta matéria no meu Concelho, deixo um vídeo, muito bem feito, com a realidade de Guimarães, e como, nesta matéria, os problemas são todos iguais, e as dificuldades que os cidadãos deficientes enfrentam também, não importa a localidade, o que interessa é chamar a atenção a quem de direito para actuar em conformidade.
A partir do 6.º minuto deste vídeo poderão ver como um homem em cadeira de rodas resolveu ultrapassar o seu obstáculo - um veículo em cima do passeio. Deplorável a falta de civismo de alguns de nós.

domingo, 18 de julho de 2010

Dia Internacional de Nelson Mandela

Se há pessoa que mereça um Dia Internacional, pelo seu exemplo, é Nelson Mandela. E a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu isso mesmo ao decidir instituir este dia, em Novembro de 2009, "pela contribuição do ex-Presidente sul-africano para a cultura da paz e da liberdade", tendo sido o primeiro reconhecimento desse género que a ONU fez a um indivíduo. Por seu lado, o Conselho de Segurança da ONU também reconheceu a dedicação de Mandela "ao serviço da humanidade na resolução de conflitos, relações entre raças, promoção e protecção dos direitos humanos, reconciliação, igualdade entre os sexos e os direitos das crianças e de outros grupos vulneráveis".
E como este dia coincide com a data do seu aniversário de nascimento, que hoje perfaz  92 anos, está duplamente de parabéns, bem como todos os que o admiram e têm a noção de que o mundo seria diferente sem o seu contributo e exemplo.
Happy Birthday and Happy Nelson Mandela's Day, Mr. Nelson Mandela!
Também o contributo dos Simple Minds, que ainda não tinham passado por aqui:

sábado, 17 de julho de 2010

Aristóteles - Da Amizade

«A amizade sincera está no meio-termo entre a adulação e a hostilidade, e mostra-se nos actos e nas palavras. O adulador é o que concede aos outros mais do que convém e mais do que têm. O inimigo é o que nega os dotes evidentes que possui a pessoa de que não gosta. Escusado será dizer que nenhum destes dois caracteres merece elogio. O amigo sincero ocupa o verdadeiro centro; não acrescenta nada às boas qualidades que distinguem aquele de quem se fala, nem o elogia pelas que não tem, mas também não as rebaixa, nem se compraz jamais em contradizer a sua própria opinião. Assim é o amigo».

De La Gran Moral, Capítulo XXIX, 6.ª edición, Espasa-Calpe, S.A., Madrid, 1976
(tradução minha)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Os trabalhadores sazonais e a União Europeia

Para os cerca de cem mil trabalhadores sazonais oriundos de países fora da União Europeia (UE), que anualmente vêm trabalhar principalmente na agricultura e no turismo, a UE está a elaborar um cartão único de permanência e de trabalho, dispositivo que tem como finalidade fixar direitos básicos a esses trabalhadores, o acesso à segurança social e aos regimes de reforma, mas também para os impedir de permanecer na Europa e ocuparem postos de trabalho permanentes.
Para obter uma autorização de trabalho sazonal, o requerente deverá apresentar um contrato ou contrato-promessa de trabalho, que terá a duração máxima de seis meses por ano civil, bem como documentos que deverão explicitar as condições de trabalho, o nível de remuneração e a duração da actividade, no respeito pelas leis do país de acolhimento.
A proposta da UE recomenda aos Estados membros a elaboração de autorizações de permanência de três anos com entradas múltiplas (seis meses por cada ano civil), não se tratando, portanto, de conceder o direito de permanência aos trabalhadores sazonais, e cada país fixará o número de sazonais a acolher e os sectores de actividade respectivos.
Alguns países, como a Alemanha, mostram-se reticentes sobre a adopção de uma tal  directiva que, contudo, terá ainda de ser debatida no Parlamento Europeu e no Conselho dos 27 países da União, antes de entrar em vigor.
Será impressão minha, mas a quantidade de burocracia e de fiscalização que estas medidas bem intencionadas requerem, irão tornar esta directiva, se aprovada, inexequível.

Imagem por: Getty Images/ John Slater
Fonte: RFI

terça-feira, 13 de julho de 2010

Fui um filósofo nos séculos XVIII - XIX

De vez em quando ofereço-me um "fait divers" para manter alguma sanidade mental e não perder a capacidade de me rir de mim mesma.
Como a situação económica e financeira do país, da zona euro e da União Europeia em geral vai prosseguindo na senda do que já escrevi, e falar agora da decisão de hoje da Agência Moody, e da consequente desvalorização do euro, ou das asneiras do governo, seria estar a repetir-me, uma vez que tudo se tem vindo a desenrolar de acordo com o que já intuí (e aqui a "intuição" é a palavra-chave para o que se segue).
Estando a "arrumar" o correio do gmail, reparei numa mensagem de Setembro de 2009 a que, na altura, talvez por falta de tempo ou de disposição, não prestei atenção, mas que arquivei com uma estrelinha, o que quer dizer que ficou a aguardar melhores dias. Esse dia foi hoje e lá fui ver do que tratava o endereço que constava na mesma, e que é, nem mais nem menos, o diagnóstico do que fomos na nossa última incarnação terrena. E sobre mim, diz o seguinte:
"Não sei se lhe parece bem ou não, mas foi um homem na sua última incarnação terrena; nasceu no território que hoje conhecemos como Ucrânia, por volta do ano 1775. A sua profissão era a de filósofo e pensador. Foi uma pessoa tímida, contida, tranquila. Tinha talento criativo, mas que esperou até esta vida para ser libertado. Por vezes, os que o rodeavam consideravam-no uma pessoa estranha.
A lição que a sua vida passada lhe deu para a incarnação actual foi a de que a sua percepção do mundo sempre lhe pareceu, de certo modo, diferente da dos outros. A lição a aprender é que deve confiar na intuição como a sua melhor guia na sua vida actual".
Ora aqui está a intuição que mencionei atrás e que, na falta de formação em Economia e Finanças, me tem permitido avaliar as situações e o seu desfecho com acerto, até agora, e que herdei do tal filósofo que já fui nos séculos XVIII-XIX. Agora já só me falta descobrir quem foi (fui) e qual o contributo que deixou (deixei) para o pensamento contemporâneo. Mas isso parece-me uma tarefa um pouco mais complicada. Vamos ver se o "talento criativo que esperou por esta vida para ser libertado" me serve de alguma coisa nesta demanda. Sou mesmo uma pessoa "estranha", como já escrevi algures :))

domingo, 11 de julho de 2010

Fernando Pessoa/ Bernardo Soares (A ideia de viajar nauseia-me)

A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos - uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.

De Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 3.ª edição, Lisboa, 2008, p. 131 (texto 122)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Giorgio Agamben - "Collants Dim"


«No início dos anos setenta podia-se ver nas salas de cinema de Paris um spot publicitário de uma conhecida marca de collants. Nele era apresentado de frente um grupo de raparigas que dançavam juntas. Quem teve a oportunidade de observar, mesmo distraidamente, alguma dessas imagens, dificilmente terá esquecido a especial impressão de sincronia e de dissonância, de confusão e de singularidade, de comunicação e de estranheza que emanava do corpo das dançarinas sorridentes. Esta impressão resultava de um truque: cada rapariga era filmada sozinha e, em seguida, fazia-se a montagem com todas as peças, tendo como fundo uma única banda sonora. Mas deste truque fácil, de calculada assimetria nos movimentos das longas pernas revestidas pela mesma mercadoria barata, de uma diferença mínima nos gestos, exalava para os espectadores uma promessa de felicidade que dizia respeito, inequivocamente, ao corpo humano.
Nos anos vinte, quando o processo capitalista de mercantilização começou a investir na figura humana, observadores de modo nenhum favoráveis ao fenómeno não puderam deixar de destacar nele um aspecto positivo, como se tivessem sido postos perante o texto adulterado de uma profecia que estava para além dos limites do modo de produção capitalista e que se tratava, justamente, de decifrar. Assim nasceram as observações de Kracauer sobre as girls e as de Benjamin sobre a decadência da aura.
A mercantilização do corpo humano, ao mesmo tempo que o sujeitava às leis férreas da massificação e do valor de troca, parecia simultaneamente resgatá-lo do estigma de inefabilidade que o tinha marcado durante milénios. Libertando-se da dupla cadeia do destino biológico e da biografia individual, ele abandonava quer o grito inarticulado do corpo trágico quer o mutismo do corpo cómico e surgia pela primeira vez perfeitamente comunicável, integralmente iluminado. Nos ballets das girls, nas imagens da publicidade, nos desfiles dos manequins, cumpria-se assim o secular processo de emancipação da figura humana dos seus fundamentos teológicos, que já se tinha imposto em escala industrial quando, no início do século XIX, a invenção da litografia e da fotografia tinha encorajado a difusão a bom preço das imagens pornográficas: nem genérico nem individual, nem imagem da divindade nem forma animal, o corpo tornava-se agora verdadeiramente qualquer.
A mercadoria mostrava aqui a sua secreta solidariedade com as antinomias teológicas (que Marx tinha entrevisto). Já que o “à imagem e semelhança” do Génesis, que fazia radicar em Deus a figura humana, vinculava-a, no entanto, deste modo, a um arquétipo invisível e fundava, assim, o conceito paradoxal de uma semelhança absolutamente imaterial. A mercantilização, libertando o corpo do seu modelo teológico, salva-lhe porém a semelhança: qualquer é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Ideia. Por isso, se a beleza perfeitamente substituível do corpo tecnicizado não tem já nada a ver com o aparecimento de um unicum que, perante Helena, perturba os velhos príncipes troianos, nas portas Ceias, vibra no entanto na beleza de Helena e no corpo tecnicizado algo como uma semelhança (“vendo-a, assemelha-se terrivelmente às deusas imortais”). Daí, também, o desaparecimento da figura humana das artes do nosso tempo e o declínio do retrato: apreender uma unicidade é tarefa do retrato, mas para apreender a “qualqueridade” é necessária a objectiva fotográfica.
Num certo sentido, o processo de emancipação era tão antigo quanto a invenção das artes. Já que, desde o primeiro momento em que uma mão delineou ou esculpiu uma figura humana, estava lá presente, a guiá-la, o sonho de Pigmalião: formar não simplesmente uma imagem para o corpo amado, mas um outro corpo para a imagem, quebrar as barreiras orgânicas que impedem a incondicionada pretensão humana à felicidade. Que se passa hoje, na idade do completo domínio da forma da mercadoria em todos os aspectos da vida social, com a submissa e insensata promessa de felicidade que vinha ao nosso encontro, na penumbra das salas cinematográficas, através das raparigas enfiadas nos collants Dim? Nunca como hoje o corpo humano – sobretudo o feminino – foi tão maciçamente manipulado e, por assim dizer, imaginado de alto a baixo pelas técnicas da publicidade e da produção mercantil: a opacidade das diferenças sexuais foi desmentida pelo corpo transsexual, a estranheza incomunicável da physis singular abolida pela sua mediatização espectacular, a mortalidade do corpo orgânico posta em dúvida pela promiscuidade com o corpo sem órgãos da mercadoria, a intimidade da vida erótica refutada pela pornografia. Todavia, o processo de tecnicização, em vez de investir materialmente no corpo, estava orientado para a construção de uma esfera separada que não tinha com ele praticamente nenhum ponto de contacto: não foi o corpo que foi tecnicizado, mas a sua imagem. Assim, o corpo glorioso da publicidade tornou-se a máscara por detrás da qual o frágil e minúsculo corpo humano continua a sua precária existência, e o geométrico esplendor das girls cobre as longas filas dos anónimos corpos nus conduzidos à morte nos Lager, ou os milhares de cadáveres martirizados na quotidiana carnificina das auto-estradas.
Apropriar-se das transformações históricas da natureza humana que o capitalismo quer confinar no espectáculo, fazer com que imagem e corpo se penetrem mutuamente num espaço em que não possam mais ser separados e obter assim, forjado nele, o corpo qualquer, cuja physis é a semelhança – tal é o bem que a humanidade deve saber arrancar à mercadoria no declínio. A publicidade e a pornografia, que a acompanham ao túmulo como carpideiras, são as inconscientes parteiras deste novo corpo da humanidade.»

De A comunidade que vem, Editorial Presença, Lisboa, 1993, Cap. XII, pp. 40 a 43

terça-feira, 6 de julho de 2010

Giorgio Agamben - "Sem classes"


«Se tivéssemos mais uma vez de pensar o destino da humanidade em termos de classes, então deveríamos dizer que já não existem hoje classes sociais, mas apenas uma pequena burguesia planetária, em que as velhas classes se dissolveram: a pequena burguesia herdou o mundo, é a forma sob a qual a humanidade sobreviveu ao niilismo.
Mas isto é exactamente o que o fascismo e o nazismo tinham igualmente compreendido, e ter visto com clareza o irrevogável declínio dos velhos sujeitos sociais constitui de facto a sua insuperável patente de modernidade. (De um ponto de vista estritamente político, fascismo e nazismo não foram superados e é sob o seu signo que vivemos ainda.) Eles representavam, porém, uma pequena burguesia nacional, ainda ligada a uma falsa identidade popular, sobre a qual agiam sonhos burgueses de grandeza. A pequena burguesia planetária, em contrapartida, emancipou-se destes sonhos e fez sua a atitude do proletariado que consiste em declinar toda e qualquer identidade social reconhecível. Tudo aquilo que é, o pequeno burguês anula-o no próprio gesto com que parece obstinadamente aderir a ele: ele apenas conhece o impróprio e o inautêntico e recusa até a ideia de uma palavra própria. As diferenças de língua, de dialecto, de modos de vida, de carácter, de vestuário e, acima de tudo, as próprias particularidades físicas de cada um, que constituem a verdade e a mentira dos povos e das gerações que se sucederam na terra, tudo isto perdeu para ele todo o significado e toda a capacidade de expressão e de comunicação. Na pequena burguesia, as diversidades que marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e reunidas numa fantasmagórica vacuidade.
Mas a falta de sentido da existência individual, que ela herdou dos subsolos do niilismo, tornou-se entretanto tão insensata que perdeu todo o pathos e transformou-se, revelando-se abertamente, em exibição quotidiana: nada se assemelha mais à vida da nova humanidade quanto um filme publicitário do qual foi apagado qualquer sinal do produto publicitado. A contradição do pequeno burguês é que ele ainda procura, porém, neste filme o produto pelo qual sofreu uma decepção, insistindo apesar de tudo em se apropriar de uma identidade que, na realidade, se tornou para ele absolutamente imprópria e insignificante. Vergonha e arrogância, conformismo e marginalidade são assim os extremos polares de toda a sua tonalidade emotiva.
O facto é que a falta de sentido da sua existência se depara com uma última falta de sentido, onde naufraga toda a publicidade: a morte. Perante ela, o pequeno burguês é confrontado com a última expropriação, com a última frustração da individualidade: a vida na sua nudez, o puro incomunicável, onde a sua vergonha encontra finalmente a paz. Deste modo, ele cobre com a morte o segredo que deve no entanto resignar-se a confessar: que também a vida na sua nudez lhe é, na verdade, imprópria e puramente exterior, que não existe, para ele, nenhum abrigo na terra.
Isto significa que a pequena burguesia planetária é verosimilmente a forma sob a qual a humanidade está avançando para a sua destruição. Mas significa também que ela representa uma ocasião inaudita na história da humanidade, que esta não deve por nenhum preço deixar escapar. Porque se os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma agora imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a esta impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta, se os homens pudessem não ser-assim, não terem esta ou aquela identidade particular, mas serem apenas o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade acederia pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria já o incomunicável.
Seleccionar na nova humanidade planetária as características que lhe permitam a sobrevivência, afastar o subtil diafragma que separa a má publicidade mediática da perfeita exterioridade que não comunica outra coisa que não seja ela própria – esta é a missão política da nossa geração.»
De A comunidade que vem, Editorial Presença, Lisboa, 1993, tradução de António Guerreiro, pp. 50-52

Supertramp - The Logical Song

domingo, 4 de julho de 2010

Giorgio Agamben - "Maneries"

Com alguma frequência uso a expressão «a minha maneira de ser», e ao ler este excerto do livro de Giorgio Agamben, "A comunidade que vem", fiquei um pouco apreensiva com a ideia de que o que me gera é a minha maneira de ser e isso "é a única felicidade verdadeiramente possível".
«É um ser deste género que Plotino devia ter em mente quando, ao procurar pensar a liberdade e a vontade do uno, explicava que não se pode dizer dele que "aconteceu ser assim", mas apenas que "é como é, sem ser dono do próprio ser"; e que "não permanece na sua própria condição, enquanto tal, mas usa-se a si tal como é" e não é assim por necessidade, na medida em que não podia ser de outro modo, mas porque "assim é o melhor".
Talvez o único modo de compreender este livre uso de si, que não dispõe porém da existência como de uma propriedade, seja pensá-lo como um hábito, um ethos. Ser gerado pela própria maneira de ser é, de facto, a própria definição do hábito (por isso os gregos falavam de uma segunda natureza): ética é a maneira que não nos acontece nem nos funda, mas nos gera. E o serem gerados pela própria maneira é a única felicidade verdadeiramente possível para os homens».

De "A comunidade que vem", Editorial Presença, Lisboa,1993, tradução de António Guerreiro,  Capítulo VII, pp. 29/30.