sexta-feira, 27 de maio de 2011

Viriato Soromenho Marques - Portugal virtual

«A campanha eleitoral entrou num verdadeiro regime de second life. Será vã a procura de qualquer relação de reflexo ou de aproximação entre o País real e o Portugal da campanha. Este último não é de carne e osso. É meramente virtual, como um jogo de computador.
Animados pelo sopro das suas pequenas ambições, os protagonistas que nos pedem o voto continuam a ignorar o essencial. E não se trata apenas da ocultação do verdadeiro programa de Governo que foi negociado com a troika, e que continua a ser tratado como se de uma mera recomendação se tratasse. O Bloco de Esquerda, por exemplo, depois da sua fase de "consciência infeliz", parece ter recuperado o ânimo com a bandeira da reestruturação da nossa dívida soberana. Mas o entusiasmo do BE, também aí confunde o essencial com o secundário. A reestruturação da dívida soberana de Portugal, da Grécia ou da Irlanda não foi inventada em Lisboa. É um assunto que se discute há mais de um ano nos labirintos da burocracia europeia. Mas, só uma profunda ignorância, ou uma hostilidade aos factos, pode fazer esquecer que o que está em causa, na verdade, é o próprio futuro da União Europeia.
A União Europeia vive, actualmente, o momento mais ameaçador da sua história. Os 27 estão hoje unidos, como diria Hobbes, não pela solidariedade, ou pela esperança, mas pelo medo mútuo. Se fosse possível àqueles que comandam a política europeia expulsar Portugal ou a Grécia do euro, sem danos colaterais para si próprios, há muito que teríamos sido lançados na mais profunda indigência, obrigados a reintroduzir uma moeda de valor medíocre. O Portugal a sério deve encarar a questão da gestão do pagamento da dívida soberana como uma questão estratégica vital. É um assunto demasiado sério para ser deixado entregue ao jogo virtual em que estas eleições patéticas se transformaram.»

No DN de ontem.

terça-feira, 24 de maio de 2011

José de Almada Negreiros - Ode a Fernando Pessoa

Tu que tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Foste de verdade, não de feito, a voz de Portugal.
De verdade e de feito só não foste tu.
A Portugal, a voz vem-lhe sempre depois da idade
e tu quiseste acertar-lhe a voz com a idade
e aqui erraste tu,
não a tua voz de Portugal
não a idade que já era hoje.
Tu foste apenas o teu sonho de ser a voz de Portugal
o teu sonho de ti
o teu sonho dos portugueses
só sonhado por ti.
Tu sonhaste a continuação do sonho português
somados todos os séculos de Portugal
somados todos os vários sonhos portugueses
tu sonhaste a decifração final
do sonho de Portugal
e a vida que desperta depois do sonho
a vida que o sonho predisse.
Tu tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Tu ficaste para depois
e Portugal também.
Tu levaste empunhada no teu sonho a bandeira de Portugal
vertical
sem pender pra nenhum lado
o que não é dado pra portugueses.
Ninguém viu em ti, Fernando,
senão a pessoa que leva a bandeira
e sem a justificação de ter havido festa.
Nesta nossa querida terra onde ninguém a ninguém admira
e todos a determinados idolatram.
Foi substituído Portugal pelo nacionalismo
que é maneira de acabar com partidos
e de ficar talvez o partido de Portugal
mas não ainda apenas Portugal!
Portugal fica para depois
e os portugueses também
como tu.

Em José de Almada Negreiros, Poemas, Assírio & Alvim, 2001, p. 153/4

Na imagem, Fernando Pessoa, por Almada Negreiros (1893-1970)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Poema em forma de memorando

Já tive oportunidade de ler o Memorandum of Economic and Financial Policies (MEFP – 15 páginas) e o Memorandum of Understanding on Specific Economic Policy Conditionality (MUSEPC – 34 páginas), que contêm o programa de reformas para o Estado Português concretizar até ao final de 2013, sector a sector, com prazos definidos, bem como os que permanecem ainda em estudo pelos técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia (CE), como é o caso das parcerias público-privadas (PPP).

Pela forma como os “três mosqueteiros”, os únicos visíveis de algumas dezenas, se comportaram nas semanas que passaram entre nós, a trabalharem sem ligarem a feriados, pontes ou fins-de-semana, pontuais e discretos, já tinham merecido toda a minha consideração e respeito. Mas nunca pensei que o resultado de todo esse trabalho me pudesse impressionar tão positivamente, de tal modo que me questiono, incrédula, se ainda terei oportunidade de ver este meu país desestatizado, ou, talvez seja mais correcto dizer, desgovernamentalizado, desburocratizado, em que a sociedade civil mais criativa e empreendedora consiga respirar, e, para tal, teremos de conseguir executar este programa com rigor. E embora saiba que o mesmo vai ser monitorizado pelas entidades referidas, o que me dá algumas garantias de que a coisa não descarrila, também conheço as personagens políticas que temos, bem como as organizações corporativas, e algumas já começaram, aliás, a demonstrar a sua contrariedade porque se vão meter nos seus assuntos, não esquecendo a população mais manipulável e mais exposta a demagogias, porque desconhecedora do conteúdo dos documentos e que, por isso, não terá a percepção de que não estamos apenas perante uma reforma do Estado, mas, talvez, de uma revolução. Quem dera que se pudesse também elaborar assim um plano para uma revolução (mudança) nas mentalidades.

Creio que foi Unamuno quem disse que nós somos um povo suicidário, e, Agostinho da Silva, que nós somos um povo suicidado. Parece um jogo de palavras, mas querem dizer coisas completamente diferentes. De facto, e olhando apenas para a nossa História mais recente, desde 1995 que uma grande parte dos portugueses, bem como algumas empresas, se têm comportado de um modo suicidário no que respeita ao endividamento aos Bancos, que, por sua vez, se endividaram junto de entidades externas para satisfazer essa procura interna, e, o resultado dessa loucura, está plasmado no número que o MEFP apresenta logo no primeiro parágrafo: no final de 2010 a dívida dos privados representava 260% do Produto Interno Bruto (PIB) e a dívida pública representava 90% do PIB, ou seja, quase o triplo da dívida pública. O bom povo português passou estes anos a endividar-se para comprar o que precisava e não precisava, à conta de juros baixos, e entusiasmou-se com os cartões de crédito, cujos juros não são assim tão baixos, mas de que nem sequer quis tomar conhecimento e, agora, estão na “secção” dos sobreendividados. Portanto, não são só os Governos que têm de ser mais responsáveis e sensatos no modo como gastam o dinheiro dos contribuintes e se endividam em nome do país, são também os cidadãos que têm de aprender a gerir melhor o seu dinheiro e as suas prioridades, porque só assim terão autoridade moral para erguer a voz, para protestar, reclamar e exigir mudanças que sejam benéficas para todos sem comprometer o futuro do país. Assim, o exemplo não tem que vir de cima nem de baixo, mas de todos.

Nota: os documentos que referi no primeiro parágrafo estão disponíveis em algumas publicações, mas deixo aqui as ligações para a “nuvem” do Google onde também os coloquei: MEFP e MUSEPC