sábado, 10 de março de 2012

José de Almada Negreiros: Panfleto Social


Eh comunistas! Eh fascistas!
Eu sei, eu sei:
«Não há esconderijo senão nas massas»!
Assim mesmo necessitais de inimigos.
Chamais construir: eliminar inimigos.

                       * * *
Volto à leviandade
a essa acrobata mágica
que realiza como a imaginação
volto ao meu poder
à minha colaboração terrena
volto às gaffes
ponho outra vez os meu olhos
inconvenientes como o amor
e tiro aliviado os óculos sociais
graduados de conveniência
e com os aros oficiais.
Desisto do escritor
prefiro o protagonista do livro do autor
fujo de casa e escondo-me na rua
fujo do nome e mais do renome
não há esconderijo senão nas massas.
A Arte só vale quando todos forem artistas
e não só os privilegiados
esses que responderam à chamada.
Morro farto de procurar semelhantes
só vejo chefes e secretários
mestres e discípulos
filhos e pais
secundários e principais
amos e servidores
criados e patrões
todos iguais.
Mais uma geração a cantar construção.
Conto quatro:
um, dois, três, quatro
Todos por bem.
Eu sei, eu sei:
«não há esconderijo senão nas massas!
Os ricos que paguem!
Os pobres que morram!
não seremos pobres nem ricos
todos iguais
iguais como os semelhantes
custa muito todos semelhantes
dá no mesmo todos iguais.»
Achei altas montanhas fora da geografia
longe da perseguição
mas o meu corpo vulnerável não passa
por onde me passa a alma.

A sociedade está podre
já fede
e não lhe cheira,
o mal só se vê nos outros
só cheira nos outros:
quando o mal é nosso
pegaram-nos
é um mal estranho.
Disseram que o homem é um animal social
aí o têm
arranjaram-na bonita.
E se calhar estão todos como eu.
Quem nos teria posto em sociedade?
Quem fez de «todos» uma realidade
ou estava a pensar na lua
ou doente de paranóia.
Que linda ideia: «Todos!»
E mais ainda: «o bem de todos!»
Serei parvo ou imbecil
só entendo cada um.
Vejo até por mor de todos
dar cabo de cada um.
Não quero mal a ninguém
mas já tenho raiva a todos.
Isto de levar cada um a ter raiva a todos
é igualzinho a desejar o bem comum
lindas maneiras de eliminar a cada um.
Porque a sociedade é de alguns
alguns daqui e alguns d’acolá
«alguns» não pode deixar de ser contra alguns
é a guerra de grupos de cá e de lá
bem diferente das batalhas de cada um.
E quando nós pertencemos a um grupo
ou contra ele ou não somos de nenhum
o mesmo dá
andam connosco às voltas
e nós a zero
no cabide
esquecemo-nos de nos levar connosco
fizeram-no-lo esquecer
falaram-nos no bem de todos.
Todos! Essa conta que ninguém sabe somar
e que nos faz suar
a nós, as suas parcelas
todos juntos para simplificar
mais simples que todos é impossível
quem foi o da ideia?
Lindas maneiras de eliminar a cada um.
Em qualquer sítio onde um seja apanhado
aí mesmo o fazem soldado
e dão-lhe o sítio p’ra defender
um pedaço de terra com significação
pois que chamam civilização
andarem os homens agrupados
e como há vários lados em toda a combinação
fazem-nos parte de todos os de um lado
e não entendemos todos
que nos matam um por um por todos os lados
em nome da sociedade.
Que nos mate a morte já o sabíamos
mas que ponham o ferro a explodir
para não escapar nem um
que outro sentido poderá agora ter a morte
do que o de um acidente provocado?
Isto tira valor à morte
como à vida lhe tiraram todo o sentido
foi a tal ideia de «todos»
que pôs isto neste estado.
Pode limpar as mãos à parede
o homem que teve a ideia de sociedade
e também aquele que disse
que éramos um animal social.

José de Almada Negreiros 

in Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pp. 158/162

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