«Se
eu fosse mesmo um “neo-liberal”, um daqueles sicários sem escrúpulos do
“capitalismo selvagem”, como as esquerdas gostam de dizer, que queria eu?
Segundo as esquerdas anti-capitalistas, a minha lista para o Pai Natal seria a
seguinte: acabar com o Estado social, baixar os salários de toda a gente menos
dos executivos ricos, e, já agora, instaurar uma ditadura. Vamos então admitir
que, enquanto “neo-liberal” selvagem, eram esses os meus desejos. Acontece que,
depois, as esquerdas acrescentam que eu também quero a troika, a austeridade, e
a dívida. E é aqui que as esquerdas não fazem sentido.
Não,
meus caros amigos anti-capitalistas, estão muito, mas mesmo muito enganados. Se
eu fosse um neo-liberal desalmado, com os objectivos que a esquerda atribui a
essa espécie biológica, eu não queria a troika, nem aceitaria a austeridade,
nem estaria disposto a pagar a dívida. Muito pelo contrário. Se eu fosse mesmo,
mas mesmo, um neo-liberal desses que vos assustam tanto, o que eu queria era a
bancarrota, a saída do euro, a desvalorização e a inflação, que foi aquilo que
a troika e a austeridade preveniram até agora.
E
porquê? Porque a bancarrota, a saída do euro, a desvalorização e a inflação,
seriam a via mais segura para liquidar o Estado social, comprimir
definitivamente os salários e talvez mesmo experimentar, com o país fora da UE,
algum velho autoritarismo. Se eu fosse um neo-liberal como a esquerda os pinta,
eu não queria ver Passos Coelho no governo a prever a reposição dos salários do
Estado, nem Paulo Macedo a viabilizar o SNS, ou Nuno Crato a tentar corrigir o
ensino público. Não, o que eu queria era ver António Costa (ou Seguro),
Catarina Martins e Jerónimo de Sousa muito juntinhos num governo
“verdadeiramente de esquerda”, a renegar a dívida pública, a recusar o tratado
orçamental europeu, a adoptar uma nova moeda, e a sair da UE. Num país sem os
petróleos do socialismo venezuelano, era meio caminho andado para a declaração
de irrelevância do Estado social e para uma economia de salários cubanos.
As
esquerdas anti-capitalistas atribuem todos os males do país ao ajustamento. Até
o facto de não renovarmos gerações, como se isso já não acontecesse desde 1981.
É verdade: a austeridade restringiu subsídios e carregou impostos. Sim,
perdemos poder de compra, mas menos do que no ajustamento de 1983-1985, e muito
menos do que se já estivéssemos a ser pagos em moeda desvalorizada. Sim, há
menos beneficiários do Rendimento Social de Inserção. Mas sem a austeridade,
não teria havido ajuda externa e não haveria hoje RSI, ou melhor, talvez
houvesse, mas com valores equivalentes a não haver.
Se
o neo-liberalismo pretende, como a esquerda diz, encerrar o Estado social, pôr
os trabalhadores a pão e água, e impor uma ditadura, então o ajustamento
frustrou os neo-liberais: manteve-nos na Europa democrática, ressalvou a maior
parte do nosso poder de compra (segundo o INE, os nossos rendimentos estão
agora ao nível de 2007, o que, convenhamos, não era o de 1975), e salvaguardou
a estrutura do Estado social, com os seus programas principais. Mais: reforçou,
até, o peso fiscal do Estado, o que, segundo os manuais, não é exactamente
liberal. O programa de ajustamento negociado com a troika poupou assim a
sociedade portuguesa a uma transição brusca, como a que teria ocorrido se
tivesse faltado financiamento externo à economia. No entanto, os altifalantes
do anti-capitalismo nacional não gostam. Pelos vistos, não lhes importa a
democracia, o Estado social, e o poder de compra. Querem ver que são eles os
neo-liberais?»
In
Observador