terça-feira, 8 de agosto de 2023

Miguel Granja, A Dignidade Guiando o Povo


“Pegarão então nos filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém”. É assim que Platão, no Livro V da 'República' (460c), descreve e prescreve, com a naturalidade própria de um mundo desprovido de cristãos, os benefícios, e até os imperativos (“Se, realmente, queremos que a raça dos guardiões se mantenha pura”), do infanticídio eugenista.
O ἀνάπηρος (anápiros), o disforme, o deficiente, o mutilado, o inválido. Levar Platão a sério é também ler aquilo que nele nos escandaliza hoje e compreender a razão, a raiz, a origem do nosso escândalo. A exposição e o abandono dos bebés “disformes” a uma morte certa (e merecida, porque a disformidade não é digna de viver) faz parte do pensamento ético-político platónico, das práticas e costumes de toda a antiguidade grega, e a própria Esparta, cuja constituição tanto inspirou Platão, concedia aos seus anciãos, como relata Licurgo (16, 1), o direito de vida e morte sobre os recém-nascidos, condenando os “reprovados”, os “disformes”, à exposição e abandono num lugar chamado “os Depósitos” (Άποθέται), situado nas escarpas do Taigeto.
Este foi o mundo – discriminatório, infanticida, eugenista, demoníaco – que a Bíblia veio incomodar, enfrentar e, contra todas as expectativas, vencer. E foi essa vitória, e a revolução na concepção do humano que ela traz consigo, que tornou possível este momento, que as nossas fibras bíblicas mais do que as nossas sinapses agnósticas, reconhecem imediatamente como mágico. Como revelatório. Como sintético. Como contendo em si, naquela perna morta e naquele sorriso vivo, o segredo, não apenas desta breve jornada de seis dias da nossa juventude, mas sobretudo da longa jornada de mais de dois milénios da nossa civilização. Ali, segurando aquela cadeira de rodas, como se de um trono papal se tratasse, não está apenas a força fresca de dezenas de braços jovens: está, servindo-se deles, a energia incansável de milhares de anos.
Eu sabia que esta foto era mais do que uma foto. Mal a vi, vi um Delacroix dos nossos tempos. Ambos os Delacroix traduzem o poderoso símbolo da emancipação dos mais fracos e da sua vitória sobre os seus opressores. Em ambos os Delacroix, a própria composição formal, como se fosse um palimpsesto secreto ou resultasse do mesmo pincel invisível, se orienta em torno de um triângulo formado pela personagem central e pela multidão que a rodeia, carrega e segue. Duas obras-primas do Ocidente judaico-cristão: uma, óleo sobre tela; outra, alma sobre carne. Dois Delacroix: nenhum deles tem nome: os seus nomes são princípios: ela Liberdade, ele Dignidade. E ambas guiando o povo. O paradoxo, no entanto, maravilhoso e tipicamente bíblico, é que, na verdade, é o Delacroix de 2023 que inspira o de 1830. Cronologicamente posterior, o Delacroix das margens de Lisboa é metafisicamente anterior ao Delacroix das ruas de Paris. É o posterior que esclarece e dá origem ao anterior. A Bíblia vira tudo ao contrário: é a sua forma original de endireitar tudo.

Texto publicado ontem no Fb e, num dos comentários, António Abreu disse que o jovem na foto é o seu filho Lourenço.


 

sábado, 24 de junho de 2023

Grupo Wagner

 O Grupo Wagner virou-se contra o seu único cliente. O contrato expirou em Maio e este grupo mercenário não recebeu o pagamento acordado. Como a única coisa que os move é o dinheiro e não o amor à pátria, liquidada a conta pode ser que a ocupação de cidades russas fique por aqui. Se tal não acontecer poderemos, quem sabe, assistir â retirada de militares russos de território da Ucrânia para irem defender a mãe Rússia e deixarem de infernizar a vida dos ucranianos. No pior dos cenários poderemos começar a ouvir As Valquírias de Richard Wagner.



sábado, 21 de janeiro de 2023

Pedro Nuno Santos e a verdade

Lamento quem se deslumbrou com a demissão de Pedro Nuno Santos de ministro das infraestruturas, considerando-o quase um acto heróico, talvez por ser invulgar por aqui. Para uma livre-pensadora, cujos neurónios são muito activos e ariscos, nada do que o jovem Pedro disse, há cerca de um mês, fez sentido, pelo que me limitei a esperar pela verdade, que surgiu ontem, pelo próprio, depois da audição no parlamento, há dias, da administradora executiva da TAP, onde a mesma declarou ter em seu poder toda a documentação comprovativa de que tudo tem sido feito com o conhecimento da tutela. Maldição a minha por não ter palas nos olhos e os neurónios continuarem em bom estado. 





segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

António Campos sobre o seu PS actual

«O meu partido hoje não está a defender uma democracia responsável e transparente.

Não está a respeitar a ética republicana, porque as próprias instituições não estão a funcionar. Em qualquer democracia responsável e transparente, onde há um poder há um contrapoder. Isso é a regra básica da democracia. E os contrapoderes não estão a funcionar. O meu partido é responsável pelos contrapoderes não estarem a funcionar.

Nós tivemos agora problemas no Ministério das Finanças com a incorporação de uma senhora [Alexandre Reis], em que a Inspeção Geral das Finanças, que é responsável por isso, não funcionou.

E temos agora a agricultura.

É ela que se deve demitir. Por uma razão muito simples: Eu não sei se ela sabia ou não da senhora. A senhora era Diretora Regional do Norte, desempenhava o lugar de alta importância. Nunca veio a público o que havia sobre ela. Ela entra para secretária de Estado e, passado 24 horas, nós passámos a conhecer esse currículo dela e, portanto, aqui há uma falta total de funcionamento das instituições, e da ética republicana, é verdade. Mas a ética está ligada às instituições.

O primeiro-ministro é aluno do Presidente da República e os dois têm a mesma tese: "O que é da política é da política, e o que é da justiça e da justiça". Isso é a tese do professor e do aluno, dos dois juristas que dirigem hoje o país.

E o país não suporta isto. A democracia não suporta o que se está a passar. Eu lutei uma vida pela democracia e hoje assisto ao desmoronar total das instituições que eu também ajudei a criar, depois do 25 de Abril.

Não têm nada a ver este PS com o PS que eu criei. Era o “Partido da Liberdade”. Instalámos as instituições todas. Onde havia um poder criámos sempre um contrapoder, para fiscalizar o poder instituído. E hoje não funcionam. E em democracia nós estamos todos a trabalhar, neste momento, para a extrema-direita e para desacreditar a democracia transparente e responsável.

O problema não é o Governo. O problema é o partido que eu criei, que está em risco. Os governos são passageiros e o que está em risco é o partido que eu ajudei a criar aqui em minha casa, clandestinamente, e que depois foi criado legalmente na Alemanha. E esse é que está em risco, porque os governos são passagens. Agora, o meu partido, neste momento, está em risco. É óbvio.»

(respostas dadas em entrevista à RR no dia 6/01/2023)