«Para nós, as partes genitais são já há longas gerações as pudenda, objectos de vergonha e, em caso de maior recalcamento sexual, mesmo de repugnância. Lancemos um olhar de conjunto à vida sexual do nosso tempo, em particular à das camadas sociais que são portadoras da civilização humana, e seremos tentados a dizer: é apenas a contragosto que os seres humanos de hoje, na sua maioria, se submetem às exigências da procriação e, ao fazê-lo, sentem-se ofendidos e rebaixados na sua dignidade humana. O que subsiste entre nós da outra concepção da vida sexual refugiou-se nas camadas populares baixas, que se mantiveram rudes, e dissimula-se nas camadas mais elevadas e requintadas, como culturalmente inferior, e não se manifesta por actos senão à custa das amargas censuras da má consciência. Tudo isto era bem diferente nos tempos primitivos do género humano. Dos dados trabalhosamente recolhidos pelos especialistas das civilizações podemos retirar a convicção de que as partes genitais eram originalmente o orgulho e a esperança dos seres humanos, eram objecto de veneração divina e transferiam a divindade das suas funções a todas as novas actividades a que o homem se dedicava. Da sua essência surgiram, por sublimação, inúmeras figuras de deuses e, na época em que a relação entre as religiões oficiais e a actividade sexual estava já oculta à consciência colectiva, certos cultos secretos esforçaram-se por mantê-lo vivo junto de um certo número de iniciados. Finalmente aconteceu que, no decurso do desenvolvimento da civilização, tantos elementos divinos e sagrados foram extraídos da sexualidade que o remanescente desta se tornou objecto de desprezo. Mas em virtude da indestrutibilidade inerente a todos os vestígios psíquicos, não devemos admirar-nos de que mesmo as formas mais primitivas de adoração dos órgãos genitais tenham persistido até épocas bem recentes e que linguagem, costumes e superstições da humanidade de hoje contenham sobrevivências de todas as fases deste processo de desenvolvimento.»
in Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, de Sigmund Freud