domingo, 2 de dezembro de 2012

Reforma do Estado



Fui desafiada a apresentar ideias para melhorar a eficiência dos serviços prestados pelo Estado, bem como a fazer uma listagem de serviços que este presta através de empresas que detém e em que os mesmos não justifiquem que tenham que ser prestados por empresas públicas. Numa primeira avaliação vieram-me tantas à mente que me pareceu que, se todas elas fossem privatizadas de imediato, ficaria resolvida uma parte, embora pequena, dos problemas financeiros do país. Depois, num outro grau de reflexão, dei-me conta de que só um louco as compraria, mesmo que fossem vendidas pelo valor simbólico de um euro, tal o caos financeiro e laboral em que se encontram.

Foi muita irresponsabilidade terem-se mantido as estruturas do Estado Novo, às quais se acrescentaram as loucuras de sucessivos governos, que culminaram nesta “coisa” que parece não ter ponta por onde se lhe pegue, de modo a que, paulatinamente, se conseguisse transformá-lo em algo simples, transparente, eficiente e sem os custos brutais da sua manutenção para os contribuintes. E o que não é feito em devido tempo, movido pela vontade, com ponderação e bom senso, mais cedo ou mais tarde tem de ser feito, mas por necessidade, como é o caso presente.

Propositadamente não referi a reforma do Estado social, mas a reforma do Estado como um todo, pois é esta que vai ser debatida antes do próximo Verão, e também porque não conheço nenhum partido ou organização cívica que defenda a extinção da função social do Estado, como, muitas vezes, se quer fazer crer. Aliás, creio que essa função é de todas a mais nobre e cuja importância se torna ainda mais evidente em tempos difíceis, e em que os custos para o contribuinte estão sujeitos a menos polémica por parte da sociedade, pela sua universalidade, não se devendo perder a sua orientação de base e que deverá ser sempre a dos mais elementares direitos humanos.

Posto isto, volto à reflexão, que está a tornar-se numa tremenda dor de cabeça.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Rilke - Cartas a um jovem poeta (8.ª)


Quero falar consigo um pouco mais, caro Senhor Kappus, ainda que praticamente não tenha nada a dizer que o possa ajudar, que lhe possa ser útil. Viveu muitas e grandes tristezas que passaram. E que elas passassem, diz-me, também o magoou e deixou amargurado. Mas peço-lhe que reflicta: estas grandes tristezas não terão antes passado por si, por dentro de si? Não terão dado nova forma a muitas coisas em si, não terão mudado um qualquer aspecto do seu ser? Perigosas e daninhas são apenas aquelas tristezas que exibimos diante dos outros para que pareçam maiores do que são; como doenças levianamente tratadas apenas nos seus sintomas, entram em remissão por um breve lapso de tempo para depois regressarem tanto mais terrivelmente; e acumulam-se no interior e são vida… são vida não vivida, desdenhada, perdida, e quase nos matam. Se pudéssemos ver mais longe do que o nosso conhecimento alcança e olhássemos para além das ameias dos nossos pressentimentos, talvez suportássemos então as nossas tristezas com mais confiança do que as nossas alegrias. Pois as tristezas são momentos em que qualquer coisa nova e desconhecida entra dentro de nós; as nossas emoções emudecem, perturbadas e tímidas, tudo em nós se recolhe, instaura-se o silêncio, e o novo, que ninguém conhece, desloca-se para o seu centro e cala-se.
Penso que quase todas as nossas tristezas são momentos de tensão, e se sentimos que nos tolhem é apenas porque já não ouvimos a vida das nossas emoções que se tornaram estranhas. Porque estamos a sós com a estranheza que entrou dentro de nós; porque por um momento tudo o que nos é conhecido e familiar desapareceu; porque estamos em plena transição e não podemos parar. É por isso que também a tristeza passa: o que é novo em nós, o que nos foi acrescentado, entrou no coração, na sua câmara mais interior, mas também não está nele – está já no sangue. E não chegamos a saber o que era. Facilmente nos levariam a crer que nada acontecera, e no entanto mudámos, como muda uma casa quando entra um hóspede. Não sabemos dizer quem entrou, talvez nunca venhamos a saber, mas vários sinais indicam que foi o futuro que assim entrou, para se metamorfosear dentro de nós muito antes de acontecer. E por esta razão é tão importante estarmos sós e atentos quando nos sentimos tristes: porque o momento aparentemente inerte e sem eventos em que o nosso futuro entra em nós está muito mais perto da vida do que qualquer outro momento ruidoso e acidental em que ele acontece como se viesse de fora. Quanto mais silenciosos, pacientes e abertos formos enquanto pessoas tristes, tão mais profundo e límpido será o novo que entre em nós, tanto melhor o saberemos receber, tanto mais será ele o nosso destino, e quando um dia mais tarde ele “acontecer” (ou seja, quando sair de nós para se mostrar aos outros), tanto maior será a afinidade e proximidade íntima que nos unirá ao novo. É necessário – e aos poucos será esse o rumo da nossa evolução – que nunca nos deparemos com nada que nos seja estranho, mas apenas com o que desde há muito nos pertence. Vários conceitos de movimento foram já reformulados, e do mesmo modo reconheceremos gradualmente que o que chamamos destino parte dos homens, não entra neles vindo de fora. Se muitos não reconheceram o que tinha origem neles, foi apenas porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam nem o fizeram seu; era um destino para eles tão estranho que, no seu susto desnorteado, pensaram que só podia ter entrado neles agora e juravam que nunca tinham encontrado nada de semelhante dentro de si. Assim como por muito tempo nos enganámos acerca do movimento do Sol, também ainda nos enganamos sobre o movimento do que está por vir. O futuro é um eixo fixo, caro Senhor Kappus, mas nós deslocamo-nos no espaço infinito.
Como não havia de ser difícil?

domingo, 30 de setembro de 2012

A minha TSU



Há muitos, muitos anos que me questionei sobre a razão por que as empresas e os empresários em nome individual tinham que pagar a Taxa Social Única (TSU) por cada colaborador que admitiam, numa percentagem muito superior à que cabia a cada colaborador, para a Segurança Social do próprio colaborador, já que apenas estes usufruíam dos direitos que tal desconto implicava – subsídios de desemprego, por doença, maternidade, reformas, etc., uma vez que, e nos casos dos empresários em nome individual com pequenos comércios ou indústrias, o que eu constatava é que, além de trabalharem 12 a 16 horas por dia, não só não tinham nenhum daqueles direitos como, muitos deles, passavam uma vida de trabalho sem saberem o que era gozar férias. Assim, e no meu raciocínio, seria mais justo que o empresário não tivesse esse encargo, que não lhe diz respeito, pois já lhe sobram as taxas, as licenças, os impostos, os seguros e todas as despesas de funcionamento, e que o/os colaborador/es auferisse/em ordenados melhores, consoante o seu mérito, fazendo com a sua capacidade de poupança o que muito bem lhes aprouvesse no que respeita a seguros ou em aplicações que lhes permitissem melhorar o valor da reforma.

Comparando esta minha teoria sobre a TSU com a que o governo queria implementar (subir a percentagem de desconto para os trabalhadores e descê-la para as empresas e empresários em nome individual) não só não têm nada a ver uma com a outra, como teria um efeito contrário ao que eu achava justo e que era o alívio total dessa responsabilidade por parte das empresas e empresários, para que pudessem pagar melhores ordenados, e não a quebra dos valores líquidos dos mesmos que se iria verificar se a medida do governo fosse implementada.

Claro que a minha teoria só faz sentido na minha cabeça e para um tempo em que a economia funcionava minimamente, há umas décadas atrás, em que ainda conseguíamos enxergar taxas de crescimento de 2% ao ano, ou coisa que o valha, porque, na última década, nem isso, pois foi um tempo de instalação e de crescimento do chamado “monstro”. E como a dívida pública não é mais do que o somatório dos défices, e dado o volume que a mesma atingiu, e que, mesmo assim, representa apenas um terço do valor da dívida externa do país, já que dois terços desse valor é dívida dos privados, o que quer dizer que temos uma dívida externa monumental, não é tempo para teorias, minhas ou alheias, mas para o pragmatismo sensato de todos nós, mesmo que um qualquer António Borges nos chame de ignorantes.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Wallace Stevens - The place of solitaires


Let the place of the solitaires
Be a place of perpetual undulation.

Whether it be in mid-sea
On the dark, green water-wheel,
Or on the beaches,
There must be no cessation
Of motion, or of the noise of motion,
The renewal of noise
And manifold continuation;

And, most, of the motion of thought
And its restless iteration,

In the place of the solitaires,
Which is to be a place of perpetual undulation.

Wallace Stevens (1879 -1955)

pintura de © Justyna Kopania

sábado, 15 de setembro de 2012

A troika é que devia lixar-se para nós


Se bem compreendo o clamor deste 15 de Setembro, subordinado ao mote “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!”, o que se pretende, então, é que as nossas vidas permaneçam hipotecadas, que vivamos muito felizes num mundo de fantasia, com políticos que ajudem à festa continuando a endividar o país para que nada falte a essa felicidade que parece realizar-se apenas no consumo e na posse de bens. E ai de quem discordar! Sujeita-se a uma saraivada de epítetos e, até, de inimigo da liberdade, como se uma pessoa, uma família ou um país sobreendividados se pudessem considerar livres.

Nas centenas de anos de História do nosso país, nunca este teve contas equilibradas, pelo que seria a primeira vez que, em democracia, e sem impérios, poderíamos ter a oportunidade de atingir esse objectivo ao mesmo tempo que se procedia a reformas estruturais do Estado. Mas se preferimos continuar a ser aquele povo que tem a fama de não se saber governar e de nem se deixar governar, talvez merecêssemos que fosse a troika a lixar-se para nós e não o inverso. E talvez por se saber que isso não vai acontecer, basta ver a paciência que têm tido com os gregos, continuamos a fazer o que melhor sabemos fazer, a brincar com o fogo, quais crianças travessas.

Dada a minha independência partidária, e embora defensora acérrima de eleições e referendos, (como já escrevi aqui num outro texto, infelizmente fazem-se muito poucos entre nós) gostaria de ver António José Seguro, não eleito, mas obrigado a governar o país para que todos pudessemos ver as maravilhosas soluções que o partido socialista agora parece ter para sairmos do buraco de forma menos dolorosa.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ideological bubble

Não tem a ver, directamente, mas lembrei-me desta frase de Fernando Pessoa/ Bernardo Soares: «Para cada filósofo, Deus é da sua opinião.»

Cartoon de © Robert B. Reich

domingo, 26 de agosto de 2012

Karl Popper e um universo mediático de qualidade


A filosofia política de Karl Popper foi, regra geral, utilizada de duas maneiras: por um lado, mais “social-democrata”, apoiada na sua “teoria proteccionista do Estado” e na sua concepção prudencial da reforma social; por outro lado, mais claramente “liberal”, apelando, pelo contrário, ao seu elogio das liberdades e contrapoderes, mas também aos seus temores perante a extensão indefinida das funções do Estado.

E a tomada de consciência dos perigos que a televisão representa só podia incitar a acentuar ainda mais essa intuição mediadora. Se uma sociedade democrática tem necessidade de liberdade para neutralizar o poder devorador do Estado, também necessita da arma regulamentar para reduzir as más utilizações da liberdade. Popper sempre achou que a economia de mercado era companheira mais ou menos insubmissa da democracia política. Porém, não aceita que ela generalize inconsideradamente as suas lógicas a todos os registos da vida social. Sobretudo quando, em nome da eficácia e da rendibilidade, submete as cadeias de televisão aos ditames cegos de concorrência, abrindo assim o caminho aos programas mais nefastos e mais deseducativos. Entre a hipótese obsoleta de um monopólio de Estado da radiotelevisão e o panorama actual da privatização e da concorrência selvagem, talvez haja lugar para uma solução intermédia: a criação de uma ordem corporativa que emita licenças e possa, em qualquer momento, retirá-las. Nem todo o poder ao Estado, nem todo o poder ao mercado.

Todo o pensamento de Popper se articula em torno de uma ética da responsabilidade. As melhores instituições, os procedimentos mais subtis, não servirão para nada se os seus habitantes e utilizadores renunciarem efectivamente ao seu dever de cidadania. Uma sociedade aberta é uma sociedade que não procura destituir os seus membros de responsabilidade pessoal, mas que, pelo contrário, cria condições para que eles possam exercê-la serena e activamente.

Esta ética da responsabilidade destina-se, em primeiro lugar, às gerações oriundas da revolução democrática contemporânea. Karl Popper sempre pensou que pertencia a uma linhagem intelectual e social que soubera tirar partido das devastações provocadas pelas barbáries totalitárias e que, nessa condição, detinha uma responsabilidade especial para com a geração seguinte. Em consequência, não é por acaso que a sua crítica sem concessões ao universo mediático visa essencialmente os programas destinados às crianças. Com efeito, é às populações adultas que dirigem a sociedade e enunciam as leis que cabe justamente “assumir as responsabilidades”, e não abrigarem-se cobardemente por detrás dos “imperativos do mercado”, dos “veredictos dos índices de audiência” ou dos “gostos dos públicos” para fugirem a elas.

Mas esta ética da responsabilidade destina-se, sobretudo, ao conjunto das pessoas que participam directa ou indirectamente na produção dos programas de televisão. Com efeito, é notável que a ordem desejada por Popper com base no modelo da ordem dos médicos ou dos advogados esteja habilitada a emitir licenças de teledifusão e a fixar, desse modo, para cada categoria, obrigações e tarefas precisas e personalizadas. Trata-se mais uma vez de estabelecer uma cadeia de interdependências e de reciprocidades, que é característica do funcionamento de uma sociedade aberta bem compreendida. A saber: restituir a cada elo da cadeia mediática o sentido de honra e de responsabilidade, manter no seio do pessoal um estado permanente de efervescência intelectual e de consciência crítica, estabelecer uma espécie de estrutura panóptica no interior da qual as demissões e cobardias de uns possam, em qualquer momento, ser neutralizadas pelos escrúpulos e temeridades dos outros, evitando, assim, que uma sociedade com a aparência democrática choque no seu seio com um novo princípio de domesticação. Como nenhuma ordem está, por natureza, protegida contra os excessos corporativistas, talvez seja conveniente associar à sua reflexão e à sua acção colectivos de cidadãos, que se empenhariam em estimular os múltiplos actores da cadeia mediática.

Karl Popper queixava-se de ninguém apresentar propostas para contrapor à dele, no sentido de melhorar a programação televisiva, particularmente quem devia atribuir licenças e controlar a qualidade dos programas. Assim, continuam a ser os governos, em nome do Estado, a fazê-lo, com os resultados conhecidos.

Bibliografia:

Televisão: um perigo para a democracia – Karl Popper: “Uma lei para a televisão”; John Condry: “Ladra do tempo, criada infiel” (ambos os textos no mesmo volume), Gradiva, 1995

domingo, 29 de julho de 2012

A monja e o capitalismo não ético


Li com muito interesse a crónica de ontem de Anselmo Borges, publicada no DN, onde expõe algum do pensamento de Teresa Forcades sobre algumas facetas do capitalismo não ético e as consequências que o mesmo acarreta para a vida da maioria dos cidadãos, bem como a sua recusa em aceitar que não há alternativas ao mesmo. Pela sua pertinência, deixo aqui o texto na íntegra:

«Nasceu em Barcelona em 1966. É doutorada em Medicina e em Teologia. Muito conhecida pelas suas posições feministas e pelas críticas às multinacionais farmacêuticas, Teresa Forcades é uma monja beneditina do Mosteiro de Sant Benet de Monserrat.
Conheci-a em Julho de 2011, em Santander, num Congresso de Teologia e Ética, e a impressão que me ficou foi a de uma mulher séria e agradável, descontraidamente inteligente e interventiva.
Foi recentemente convidada para a conferência inaugural de um encontro de empresários, talvez o mais importante da Catalunha, com a presença de umas seiscentas pessoas.
Ela é absolutamente favorável ao empreendedorismo. Quereria que isso fosse uma possibilidade para todos, pois isso significa realizar possibilidades e ter iniciativas próprias. Mas põe em causa o empresariado baseado numa relação contratual num quadro capitalista sem ética. Por três motivos.
É uma mentira o mercado que se diz livre. De facto, ao longo da história, o mercado nunca foi livre. "Foi sempre regulado a favor de certos interesses: da realeza, interesses proteccionistas, da classe dominante, do parente dos governantes de turno." Mercado livre é "uma hipocrisia, uma falácia".
Depois, a lógica do capitalismo, no quadro do mercado global, quer "o máximo lucro". Ora, é aberrante, do ponto de vista antropológico e humano, pensar que a melhor maneira de incentivar as pessoas, a sua criatividade, a actividade económica e, em última análise, o crescimento, seja o lucro máximo. Satisfeitas as necessidades básicas, "o que me estimula não é o dinheiro", mas a curiosidade intelectual, o desafio de descobrir potencialidades e encontrar quem ajude a realizá-las, o apreço dos colegas, a valorização do trabalho que faço, ver que o trabalho das pessoas transforma de modo positivo as suas vidas. Porque não criar uma sociedade fundada no que verdadeiramente nos dá gosto e nos realiza? E o direito à alimentação, à educação, à saúde, à reforma tem de estar acima do mercado e do lucro.
Portanto, o capitalismo não lhe parece ético. E assume a crítica marxista da mais-valia, dando um exemplo: no mosteiro, temos uma pequena empresa de cerâmica e há uma pessoa de fora que lá trabalha; se lhe pagarmos um euro e ganharmos mil, o capitalismo dirá: que bem! "Mas isto é indigno, pois vai contra a dignidade do trabalho." Há diferenças aberrantes: num contrato, "talvez esteja bem que eu ganhe um e tu ganhes quatro ou até dez, mas mil não pode ser de modo nenhum".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Para bom entendedor...

«O homem, animal multiplamente mentiroso, artificial e impenetrável, inquietante para os outros animais, menos pela força do que pela manha e esperteza, inventou a boa consciência para gozar, pelo menos uma vez, a sua alma como uma coisa simples; e toda a moral é uma longa e audaciosa falsificação, graças à qual se torna possível um gozo perante o espectáculo da alma. Consideradas sob este aspecto, há talvez mais coisas do que se julga em geral que cabem na ideia de "arte".»

F. Nietzsche

in Para além do bem e do mal

"Então a gente não diz, apenas sente"


sábado, 23 de junho de 2012

Conferência Rio +20


Tendo chegado ao fim a Conferência promovida pelas Nações Unidas, sobre Desenvolvimento Sustentável, que se realizou no Rio de Janeiro, Brasil – a Rio +20, e cujos resultados foram tão decepcionantes como os das que se efectuaram antes desta, particularmente por falta de vontade política para alterar a situação, deixo a declaração final da WWF (World Wide Fund for Nature) de 22 de Junho de 2012, onde, pelo menos, se constata a vontade de não baixar os braços, à semelhança de muitas outras ONG e de cidadãos empenhados por esse mundo fora:
«Com as negociações a chegarem ao fim, o director geral da WWF, Jim Leape, emitiu hoje a seguinte declaração final àcerca da Conferência Rio +20:
Esta foi uma conferência sobre a vida: sobre as gerações futuras; sobre as florestas, oceanos, rios e lagos de que todos nós dependemos para a nossa comida, água e energia. Foi uma conferência para abordar o desafio premente da construção de um futuro que nos pode sustentar.
Infelizmente, os líderes mundiais que se reuniram aqui perderam de vista esse objectivo urgente.
Com muito poucos países dispostos a pressionar para a acção, a presidente brasileira, Dilma Rousseff, escolheu conduzir um processo sem conteúdo sério – em detrimento do planeta.
O resultado é uma oportunidade desperdiçada – um acordo que não encaminha o mundo em direcção ao desenvolvimento sustentável.
A urgência de agir, no entanto, não mudou. E a boa notícia é que o desenvolvimento sustentável é uma planta que tem raízes, que irão crescer independentemente de liderança política fraca.
Ainda assim estão a surgir lideranças activas em comunidades, cidades, governos e empresas que estão a colocar o objectivo de proteger o nosso ambiente, reduzir a pobreza, e de nos mover em direcção a um planeta mais sustentável em lugar prioritário.
O que precisamos é de acções em todos os lugares, de pessoas individuais, vilas, cidades, países, pequenas e grandes empresas e organizações da sociedade civil e movimentos. Nós precisamos que todos assumam a responsabilidade que os líderes mundiais não conseguiram assumir na Conferência do Rio.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Dimítris Dimitriádis "Vivemos à luz de uma estrela morta"


Para “iluminar” o meu texto de ontem sobre a Grécia, não podia ter encontrado melhor do que esta entrevista feita a Dimítris Dimitriádis e que podem encontrar também aqui.

«A crise multifacetada que atinge os gregos é o resultado de séculos de decadência, marcados pela falência do Estado e perda do sentido moral, diz o dramaturgo Dimítris Dimitriádis. Para ele, o seu país está morto e deve aceitar-se isso para se poder dar o salto. Excertos.

Fabienne Darge: Em 1978, escreveu o texto "Morro como país". Fala-se nele no desaparecimento de uma nação que acaba sem nome nem história. O que sente que está a acontecer na Grécia?

Dimítris Dimitriádis: É obviamente uma sensação muito estranha. Escrevi o “Morro...” há trinta e cinco anos: o país acabava de sair da ditadura dos coronéis, era um período cheio de esperança, de promessas e de prosperidade. Foi uma situação pessoal de absoluta solidão que me levou a escrever esse texto, que assumiu a forma de uma parábola: falo de um país que morre porque não aceita o seu próprio fim, nem consegue aceitar o outro. Um país que se sente sitiado durante 1000 anos, que não aceita aquilo a que chama o inimigo, que não vê que o "inimigo" é a sua perspectiva de futuro. O que caracteriza a Grécia é uma espécie de estagnação, de imobilismo mental: fica-se agarrado aos hábitos, tanto psicológicos como sociais; vive-se com base numa tradição morta, que ninguém sonha em renovar.
É um problema gravíssimo: este país que é a Grécia, histórico por excelência, está preso no mecanismo da história. E assim chegámos a um beco sem saída: tudo de que se fala, essa grande herança grega de que nos valemos, petrificou-se sob a forma de ideias feitas, estereótipos. Isto não é novo: há muito tempo que, na Grécia, vivemos à luz de uma estrela morta. O que senti há 35 anos tornou-se hoje mais agudo: a "crise" não será resolvida sem uma verdadeira tomada de consciência histórica, que passa pelo reconhecimento de que algo morreu, para que possa ter lugar um novo nascimento. Como no verso de T. S. Eliot: "No meu fim está o meu começo." Falta-nos ainda aceitar o fim.

A crise é, então, principalmente histórica, não política nem económica?

Sim, embora eu não negue as dimensões económica e política. Deve ser repetido incessantemente que o sistema político em que vivemos, na Grécia, que data da ocupação otomana (e tem, portanto, vários séculos), é totalmente clientelista. Os grandes terratenentes do passado foram substituídos por partidos políticos, mas têm a mesma relação com as pessoas. O Estado pertence ao partido, que o utiliza e explora os recursos públicos para manter o seu sistema de clientela.

domingo, 17 de junho de 2012

"Desgrécia"


Só quem não conhece a actual sociedade grega não sorrirá ao ouvir alguns opinadores defenderem que, o melhor para a Grécia, depois das eleições parlamentares em curso, seria a constituição de um governo de coligação, de preferência de vários partidos políticos. Ora, sendo a sociedade grega assente, predominantemente, nas ligações familiares, ligações essas alargadas aos que estão mais próximos, como vizinhos, compadres, etc., privilegiando o compadrio, o favor, a cunha dentro destes seus pequenos círculos, e por uma desconfiança por tudo o que tenha a ver com o Estado, daí a fuga massiva ao pagamento de impostos, por um lado, e, por outro, o tentar extorquir do mesmo Estado todas as benesses a que se julgam ter direito mesmo que não tenham contribuído para tal (em abono da verdade, neste último aspecto nem são muito diferentes dos portugueses). Daqui só pode resultar que encaram o Estado como qualquer coisa que lhes é estranha, quase como um abcesso, e não como uma estrutura da qual todos fazem parte e em que cada um tem o seu papel a desempenhar, quer no campo político e social, quer no político-partidário. E é por essa maneira de ser, dessa desconfiança permanente que grassa também dentro e entre os partidos políticos, já que são formados por pessoas educadas da mesma maneira que os demais cidadãos, ou seja, dentro dos tais círculos restritos familiares e afins, que não há possibilidade de um compromisso sério e duradouro para uma governação em que se coloquem os interesses do país acima de todos os outros.

Poderia pensar-se que a entrada da Grécia para a União Europeia (UE) contribuísse para uma alteração desses hábitos ao verem, na prática, como muitos países governados por coligações são democracias estáveis e prósperas. Mas não. Entraram, até, com o pé esquerdo, ao forjarem os orçamentos e os défices. E é nesse pé que continuam e que continuarão. E se é certo que, numa fase inicial, a CEE, agora UE, teve um papel importantíssimo ao permitir a entrada a Estados mais débeis economicamente para que as suas democracias recentes se pudessem aprofundar, também é certo que a UE passaria muito bem sem estes casos patológicos que, neste momento difícil, só atrapalham o próprio aprofundamento da União, uma vez que não será feito em virtude de um pensamento devidamente estruturado, mas à medida que vão aparecendo “focos de incêndio”, quais bombeiros desprevenidos.

Aos que dizem que nem lhes passa pela cabeça a existência de uma UE sem a Grécia, o berço da democracia, da Filosofia, de parte da nossa preciosa cultura greco-latina, poderei contrapor que, a Grécia moderna, pelo que afirmei acima, nada tem a ver com esse período, nem ao nível de pensamento nem da prática. Do tempo dos Sábios e dos Filósofos, temos o mais importante, que são os livros que estão aí para todos, em muitas línguas. Só para citar um, leia-se a “Ética a Nicómaco”, a “Ética a Eudemo” ou “A Grande Moral”, de Aristóteles, e depois poderão tirar as vossas próprias conclusões sobre o que Aristóteles pensaria do comportamento dos gregos de hoje.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Itália e Portugal: intercâmbios musicais no século XVIII


É já neste Sábado, 2 de Junho, das 21:00 às 22.30h, que se realiza na Igreja de S. Julião, em Setúbal, o evento “Itália e Portugal: intercâmbios musicais no século XVIII”, organizado pela respectiva Câmara Municipal e pela Fundação Helen Hamlyn Trust. Nele se assistirá à estreia em Portugal do coro de câmara inglês Contrapunctus, conduzido pelo especialista em música antiga portuguesa Owen Rees, num concerto em que participa, também, Stephen Farr no órgão, e com obras de compositores que usufruíram do intercâmbio cultural entre Portugal e Itália no reinado de D. João V, entre eles Domenico Scarlatti.
 
Antes deste concerto, às 20:30h, actuará o coro de câmara do Conservatório Regional de Setúbal, com excertos de “Glória”, de Vivaldi.
 
Entretanto, e para abrir o apetite, deixo a Sonata in G (K108) de Domenico Scarlatti (1685-1757):

terça-feira, 22 de maio de 2012

Laurie Anderson


Laurie Anderson está em Portugal para apresentar o seu novo espectáculo “Dirtday”, com início hoje, dia 22 de Maio, no Centro Cultural Vila Flôr, em Guimarães, depois do que se seguirão o teatro Gil Vicente de Coimbra, quarta-feira, dia 23, o teatro Aveirense em Aveiro, quinta-feira, dia 24, o cineteatro de Torres Vedras, sexta-feira, dia 25, e o teatro Virgínia de Torres Novas, sábado, dia 26.

Mas como, de Laurie Anderson, me agrada particularmente a canção “Strange Angels”, que alguns recordarão do filme “The Doctor”, que recebeu o título português “Um golpe do destino”, é essa belíssima canção que aqui deixo, uma vez que, devo confessar, não gosto muito daqueles seus temas em ambientes electrónicos, com orquestrações dissonantes e voz robotizada, embora aprecie a sua posição crítica não só face aos EUA como ao mundo em geral no que à política diz respeito e que conduziram às crises económicas, financeiras e sociais que estamos a viver.
 

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Congresso Internacional Vergílio Ferreira


O CEFi – Centro de Estudos de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, divulgando o labor de investigação no âmbito do “Seminário Internacional sobre Vergílio Ferreira”, organiza, em Lisboa, nos dias 17, 18 e 19 de Maio, o Congresso Internacional “Da Ficção à Filosofia, no Cinquentenário de Estrela Polar e Da Fenomenologia a Sartre”, através do qual se possa reavivar a presença interpelante do infatigável escritor de “romances-problema”.
Num tempo de desnorte e de vazio antropológico, trazer uma vez mais ao debate um autor que não se cansa de procurar o “homem fundamental”, afigura-se tarefa urgente e necessária. O CEFi endereça o convite à participação neste Congresso a todos os que se inquietam com o destino do ser humano. Outros contactos: 217 214 127 e cefi@fch.lisboa.ucp.pt

Programa:

Dia 17 de Maio – UCP (Lisboa) – Anfiteatro 2

14:00 – Recepção dos participantes
14:30 – Sessão de Abertura / Autoridades
Conferência de Abertura:

Manuel Ferreira Patrício – «Vergílio Ferreira: em busca do sentido que faz ou não faz o existente e a vida humana»

15:15 – 1º Painel — Vergílio Ferreira e o Romance

Moderador: Américo Pereira
Lídia Jorge – «Vergílio Ferreira: uma invocação ao seu corpo – o ficcionismo habitado pelo filósofo»
Jorge Maximino – «Linguagem, experiência e tempo na obra narrativa de Vergílio Ferreira»
Vanda de La Salete – «Fusão Vergílio-Escrita»
Celeste Natário – «Luz e solidão em Estrela Polar»
16:45 – Pausa para café

17:00 – Conferências

Fernanda Irene Fonseca – «Tempo e narração em Vergílio Ferreira:  questionação filosófica e realização ficcional»
Rosa Maria Goulart – «Vergílio Ferreira: o romance do fim»

18.00 – 2º Painel — Vergílio Ferreira: o corpo e os corpos

Moderador: Jorge Maximino
Vitor Ló – «Vergílio Ferreira e a motricidade humana»
Isabel Cristina Rodrigues – «A câmara clara: Vergílio Ferreira e a arte da imagem»

18:45 – Fim dos trabalhos do 1º dia
Dia 18 de Maio – UCP (Lisboa) – Anfiteatro 2

09:30 – Conferência

Hélder Godinho – «A diferença de uma letra no nome das gémeas de Estrela Polar»
10:30 – Pausa para café

10:45 – 3º Painel — Estrela Polar: romance da solidão?
Moderador: Samuel Dimas
Maria de Lurdes Sigardo Ganho – «O universo existencial da obra Estrela Polar»
Florinda Martins – «Estrela Polar: sementes de o fenómeno erótico»
Eunice Cabral – «O Amor como entidade impossível em Estrela Polar de Vergílio Ferreira»
12:45 – Almoço
.
14:30 – 4º Painel — A dimensão trágica do protagonista vergiliano

Moderadora: Maria de Lourdes Sirgado Ganho
.
Nuno Júdice – «O esquema mítico em «Aparição» de Vergílio Ferreira»
Bruno Béu de Carvalho – «A imanifestável decepção do conceito: silêncio e  apofatismo interrogativo em Vergílio Ferreira»
Américo Pereira – «Solidão e tragédia. A irrelação inter-humana como lugar próprio da tragédia»
Mariana Cascais -  «Da Aparição à Revelação»
16.00 – Pausa para café

16:15 – 5º Painel — Da fenomenologia a Sartre
Moderadora: Vanda de La Salete
Manuel Cândido Pimentel – «O enigma da transcendência do eu em Vergílio Ferreira»
Pedro Cabrera – «Patologia da liberdade:  Anders (Stern), Sartre, Vergílio Ferreira»
Cassiano Reimão – «Ética e Liberdade – De Vergílio Ferreira a Sartre»
18.00 – Fim dos trabalhos do 2º dia

Dia 19 de Maio – UCP (Lisboa) – Anfiteatro 2

09:30 – 6º Painel — Vergílio Ferreira hoje: que lugar para a esperança?
Moderador: José Antunes de Sousa
Paula Pina – «”Aí é que sim”: tema e variações»
Samuel Dimas – «A questão de Deus em Vergílio Ferreira»
Isabel Soler – «Assédios à identidade esquiva: ler hoje Vergílio Ferreira»
11:00 – Pausa para café
11:15 – Conferência
António Braz Teixeira – «A reflexão estética de Vergílio Ferreira»
12:15 – Sessão de Encerramento:
Resumo do Congresso: José Antunes de Sousa
Alocução final: Manuel Cândido Pimentel
13:00 – Fim dos trabalhos do Congresso

sábado, 5 de maio de 2012

Kierkegaard: 199.º aniversário de nascimento


Ainda não tinha prestado homenagem, neste espaço, a Kierkegaard que, em conjunto com Schopenhauer e Nietzsche, costumo designar como o meu trio de desassossegadores, porque, com argumentos diferentes, nos deixam sempre sozinhos perante nós mesmos e perante o mundo e a vida, num processo de auto-análise quase ininterrupto, em busca de respostas dentro de nós mesmos, numa observação microscópica e contínua do nosso “eu”, tarefa muito exigente, solitária e desgastante, ou, para utilizar os conceitos de Kierkegaard, de angústia e desespero.

Ao contrário do que fiz com Schopenhauer e Nietzsche, de que já deixei vários excertos de obras e máximas em ambos os blogues, não o faço com Kierkegaard, cujas obras principais, como O Conceito de Angústia, Temor e Tremor, “Either-Or”, etc., necessitam de uma leitura e de uma abordagem muito atenta para a sua total compreensão, e não são propiciadoras a que se recortem parágrafos ou frases sem se correr o risco da descontextualização. Deixo, no entanto, a 2.ª parte de um documentário sobre ele, realizado pela BBC, que intitularam de “Sea of Faith” (com este mesmo título também fizeram 2 sobre Schopenhauer).

Kierkegaard [Copenhaga, 5/5/1813 – 11/11/1855]


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Democracia e Liberdade

Diz Jean-Jacques Rousseau, no Livro III, capítulo IV do livro O Contrato Social, que «se houvesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente», afirmação que pode levar-nos a concluir que só entre iguais e com o mesmo estatuto seria possível uma democracia perfeita, e que, portanto, esse sistema dificilmente poderia ser mantido por simples mortais, como nós, vivendo em sociedades tão estratificadas. E é nesta base de raciocínio que entendo as afirmações seguintes, que já reproduzi noutro lugar, e que partilho aqui, porque transmitem não só as vicissitudes de qualquer democracia actual, como nos lembram o que é de facto importante e que se deve preservar a todo o custo: a liberdade.
«(...) não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, porque não há nenhum que tenda tão forte e continuamente para mudar de forma, nem que exija mais vigilância e coragem para ser mantido na sua. É sobretudo nesta constituição que o cidadão tem de se armar de força e constância e dizer em cada dia da sua vida no fundo do coração o que dizia um virtuoso Palatino (*) na Dieta da Polónia: "Malo periculosam libertatem quam quietum servitium." ("Prefiro os perigos da liberdade ao sossego da servidão.”)

(*) O Palatino da Polónia, pai do rei da Polónia, duque da Lorena.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), O Contrato Social, Livro III, capítulo IV

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Fernando Alves: Da frivolidade (Llosa e Camus)


Tendo relido recentemente os "Discursos da Suécia" que Albert Camus proferiu em 1957, designadamente o que tem por título "O artista e o seu tempo", foi com muita curiosidade que li hoje a crónica de Fernando Alves, na TSF, que o trouxe a lume, bem como algumas afirmações de Vargas Llosa, neste tempo em que parece que tudo é cultura e nada o é, a propósito de comportamentos políticos e sociais com que somos brindados diariamente e que mais parecem pertencer às "artes" de entretenimento. Mas o melhor é ler a crónica:

 

«A palavra "frivolidade" corre o noticiário destes dias. Ainda nos lembramos da recente capa do "Economist" sobre "a eleição mais frívola do Ocidente", com Hollande e Sarkozy sentados na relva, numa curiosa recriação de um célebre quadro de Manet.
E agora vários dirigentes partidários espanhóis se referem, indignados, à frivolidade de um rei que, em plena crise, foi caçar elefantes para o Botswana. O jornal "El Mundo" considerou que o triste espectáculo dado pelo monarca espanhol "transmite uma imagem de indiferença e frivolidade que o Chefe de Estado jamais deveria dar".
É um exercício a que nos deveríamos entregar com mais frequência: o da percepção dessa frivolidade que se impôs como regra, como "ar do tempo". Esse exercício deveria assustar-nos, porque fomos cedendo a essa evanescência doce, a essa pauta leviana e fácil. Em todos os domínios, na política, no jornalismo, na convivialidade quotidiana.
Uma importante entrevista de Vargas Llosa ao jornal "El Pais" veio, este fim-de-semana, desafiar-nos a que encetemos esse exercício. A entrevista toma como pretexto a recente publicação pela Alfaguara do novo ensaio de Vargas Llosa, "A civilização do espectáculo". Ele fala deste tempo em que, "como não há maneira de saber o que é a cultura, tudo é cultura e já não o é". Essa "dissolução de hierarquias e referentes" é, para o autor de "Conversa na Catedral", uma clara consequência do "triunfo da frivolidade, do reinado universal do entretenimento".
Vale a pena mergulhar nesta longa entrevista, enquanto não chega o ensaio de Vargas Llosa. Ela contém avisos muito sérios sobre os perigos que ameaçam a cultura democrática. Sobre os perigos que advêm da frivolidade que é a marca destes dias. Ela manifesta-se, lembra o peruano, por um quadro de valores "completamente confundido, pelo sacrifício da visão a longo prazo em benefício do imediato".
Por causa desta entrevista, a que voltarei, fui procurar um dos discursos de Camus, por ocasião da atribuição do Nobel, em 57, aquele que tem por titulo "O Artista e o seu tempo". Lá está a referência ao modo como a arte se afirma "numa perpétua tensão entre a beleza e a dor, o amor dos homens e a loucura da criação, a solidão mais insuportável e o assédio da multidão, a recusa e o consentimento". Nesse discurso, proferido no grande anfiteatro da universidade de Upsala, Camus lembra-nos que a arte "caminha entre dois abismos que são a frivolidade e a propaganda".»


Fernando Alves (na crónica “Sinais”, hoje, na TSF)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Nietzsche: "O problema dos que esperam"

«São precisos muitos casos de sorte e muitas coisas incalculáveis para que um homem superior, em quem dorme a solução de um problema, chegue ainda a tempo para agir - "à explosão", como se poderia dizer. Em geral, tal não acontece, e em todos os recantos da Terra há os que esperam, que mal sabem em que sentido esperam, mas menos ainda sabem que esperam em vão. Por vezes, também, chega tarde demais o toque de alvorada, aquele acaso que dá a "licença" para agir - acontece quando a melhor juventude e força de agir estão gastas pelo estar-se sentado; e quantos não descobriram, com susto, ao levantarem-se "sobressaltados", que tinham os membros dormentes e o espírito já pesado demais! "É tarde demais", disse, tornado descrente de si próprio e, agora, inútil para sempre. Será que, no reino do génio, o "Rafael sem mãos", entendida a palavra no sentido mais lato, não é talvez a excepção, mas a regra? O génio talvez não seja tão raro: mas são-no as quinhentas mãos que são precisas para tiranizar o καιρós, o "tempo oportuno", para agarrar o acaso pelos cabelos!»

F. Nietzsche, in Para além do bem e do mal, Guimarães Editores, 1978, p. 208

Hoje deixo, também, um documentário sobre a vida e obra de Nietzsche, feito pela BBC, e que, curiosamente, tendo feito documentários sobre outros filósofos, atribuiu a todos o mesmo título "Human, all too human", que nos recorda o livro de Nietzsche "Humano, demasiado humano" e não o de qualquer outro.


 

quinta-feira, 29 de março de 2012

Leitura integral de "Requiem: uma alucinação", de Tabucchi


Na próxima segunda-feira, 2 de Abril, tem início às 10:30h, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, a leitura integral do livro de António TabucchiRequiem: uma alucinação”. Para os menos familiarizados com esta obra, deixo um texto que Carlos Vaz Marques escreveu em 2009 e que dá boas pistas sobre a mesma.

«O REQUIEM QUE RI
[texto para a revista Time Out, em Abril de 2009]

Mesmo os leitores mais distraídos saberão sem dificuldade, logo nas primeiras páginas do “Requiem”, de Antonio Tabucchi, que estão perante uma obra de ficção. O narrador senta-se no jardim de Santos a ler, no jornal A Bola, o relato de uma vitória do Benfica sobre o Real Madrid, na noite anterior. Ainda para mais uma vitória fora.
Num romance em que Lisboa é protagonista e em que vivos e mortos, sonho e realidade, fantasmas e gente convivem alegremente (sim, há no “Requiem” grandes momentos de comédia), está dado o tom. O subtítulo do romance é, muito apropriadamente, “uma alucinação”.
O estrangeiro, de quem nunca saberemos o nome ao longo do livro, alter-ego evidente do próprio autor, lê A Bola enquanto faz tempo à espera que chegue “o maior poeta do século vinte”. O nome de Fernando Pessoa também nunca será referido. Marcaram encontro às doze no Cais de Alcântara, “mas talvez (ele) quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite.”
“O meu Convidado” há-de aparecer, de facto, doze horas depois, para uma ceia hilariante, com um menu de que constam pratos como “cherne trágico-marítimo, linguado interseccionista, enguias da Gafeira à moda do Delfim e bacalhau escárnio e maldizer.”
Entretanto, nas doze horas de espera, percorremos alguns dos locais emblemáticos da cidade. É um domingo de Julho, de um calor sufocante. Encharcado em suor, o narrador precisa de comprar uma camisa. Mete-se num táxi mas terá de ser ele a indicar o caminho, rua por rua, ao “Chauffeur de Táxi”, um imigrante são-tomense que está cá há pouco tempo. Isto é Lisboa.
Passamos pelo Chiado, inevitavelmente, e dirigimo-nos ao cemitério dos Prazeres, ponto de paragem obrigatória. Estamos num requiem, é bom não esquecer. Um requiem, explica Tabucchi na nota introdutória, executado “numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas.”
Havemos de passar, sucessivamente, pelo Museu de Arte Antiga, pela Casa do Alentejo, às Portas de Santo Antão, ou pelo Terreiro do Paço, sem tapumes, onde voltamos a ter consciência de que a literatura nos proporciona experiências que – pelo menos por enquanto – nós, os lisboetas de 2009, não podemos obter de outro modo: “o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento.”
“Requiem”, de António Tabucchi, é uma das mais belas cartas de amor a Lisboa das últimas décadas. Um romance que o escritor italiano compôs directamente em português. O que também, só por si, é já uma extraordinária declaração de amor.»
Carlos Vaz Marques
 

sábado, 24 de março de 2012

Fernando Pessoa: Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal


«Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal; ou, se se preferir, há três espécies de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo da nação e o da sua expansão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Este português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe também.
Outro é o português que o não é. Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o Constitucionalismo, e tornou-se completa com a República. Este português (que é o que forma grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo, e quase toda a gente das classes dirigentes) é o que governa o país. Está completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e moderno. Contra sua vontade, é estúpido.
Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por alturas de El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora. Foi-se embora em Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele. Como o último verdadeiro Rei de Portugal foi aquele D. Sebastião que caiu em Alcácer Quibir, e presumivelmente ali morreu, é no símbolo do regresso de El-Rei D. Sebastião que os portugueses da saudade imperial projectam a sua fé de que a família se não extinguisse.
Estes três tipos do português têm uma mentalidade comum, pois são todos portugueses mas o uso que fazem dessa mentalidade diferencia-os entre si. O português, no seu fundo psíquico, define-se, com razoável aproximação, por três característicos: (1) o predomínio da imaginação sobre a inteligência; (2) o predomínio da emoção sobre a paixão; (3) a adaptabilidade instintiva. Pelo primeiro característico distingue-se, por contraste, do ego antigo, com quem se parece muito na rapidez da adaptação e na consequente inconstância e mobilidade. Pelo segundo característico distingue-se, por contraste, do espanhol médio, com quem se parece na intensidade e tipo do sentimento. Pelo terceiro distingue-se do alemão médio; parece-se com ele na adaptabilidade, mas a do alemão é racional e firme, a do português instintiva e instável.
A cada um destes tipos de português corresponde um tipo de literatura.
O português do primeiro tipo é exactamente isto, pois é ele o português normal e típico. O português do tipo oficial é a mesma coisa com água; a imaginação continuará a predominar sobre a inteligência, mas não existe; a emoção continua a predominar sobre a paixão, mas não tem força para predominar sobre coisa nenhuma; a adaptabilidade mantém-se, mas é puramente superficial — de assimilador, o português, neste caso, torna-se simplesmente mimético.
O português do tipo imperial absorve a inteligência com a imaginação — a imaginação é tão forte que, por assim dizer, integra a inteligência em si, formando uma espécie de nova qualidade mental. Daí os Descobrimentos, que são um emprego intelectual, até prático, da imaginação. Daí a falta de grande literatura nesse tempo (pois Camões, conquanto grande, não está, nas letras, à altura em que estão nos feitos o Infante D. Henrique e o imperador Afonso de Albuquerque, criadores respectivamente do mundo moderno e do imperialismo moderno) (?). E esta nova espécie de mentalidade influi nas outras duas qualidades mentais do português: por influência dela a adaptabilidade torna-se activa, em vez de passiva, e o que era habilidade para fazer tudo torna-se habilidade para ser tudo.» 

In Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão) Lisboa, Ática, 1979.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Leonard Cohen: Going home

Ana Hatherly: O jogo é um itinerário


Na minha oficina herética
o labirinto contraria o linear:
percorre-me
como se fosse uma veia
segura em seus meandros

A não-necessidade, o que seria?
que nova desordem criaria?
que outras descobertas?

A fugaz eternidade das ideias-mestras
incessante refaz os jogos da racionalidade
mas o jogo é um itinerário
e a sedução do rigor
recoloca-nos incessantemente na senda do desejo.

Ana Hatherly

in Itinerários, Edições quasi, 2003

segunda-feira, 12 de março de 2012

Se Séneca o diz...


«Se não me engano, foi Cúrio Dentado que disse que preferia morrer do que viver morto: o pior dos males é sair do mundo dos vivos antes de morrer. Mas, se vivemos num tempo em que a vida pública é intratável, devemos dedicar-nos sobretudo ao ócio e às letras, tal como, numa perigosa travessia, se anseia constantemente alcançar o porto; nem esperes que os assuntos te abandonem, liberta-te deles por ti próprio.» (*)

Este conselho de Séneca deve ter ficado tão bem gravado no meu espírito que agora, ao relê-lo, me apercebo que é exactamente o que tenho feito ultimamente, ou seja, que não tenho esperado que os assuntos públicos, de entre os quais os da política diária, (ou talvez fosse mais apropriado dizer, da politiquice diária) me abandonem, mas que tenho sido eu a libertar-me deles, não acrescentando nem mais uma linha ao que escrevi há alguns meses sobre o que me parecia verdadeiramente importante para o nosso futuro enquanto país. E é o todo que continua a interessar-me, não os “fait divers”.


(*) Lúcio Aneu Séneca, in A Felicidade e a Tranquilidade da Alma, Ésquilo Edições, Lisboa, 1.ª edição, 2006, p. 78, V. 5.

sábado, 10 de março de 2012

José de Almada Negreiros: Panfleto Social


Eh comunistas! Eh fascistas!
Eu sei, eu sei:
«Não há esconderijo senão nas massas»!
Assim mesmo necessitais de inimigos.
Chamais construir: eliminar inimigos.

                       * * *
Volto à leviandade
a essa acrobata mágica
que realiza como a imaginação
volto ao meu poder
à minha colaboração terrena
volto às gaffes
ponho outra vez os meu olhos
inconvenientes como o amor
e tiro aliviado os óculos sociais
graduados de conveniência
e com os aros oficiais.
Desisto do escritor
prefiro o protagonista do livro do autor
fujo de casa e escondo-me na rua
fujo do nome e mais do renome
não há esconderijo senão nas massas.
A Arte só vale quando todos forem artistas
e não só os privilegiados
esses que responderam à chamada.
Morro farto de procurar semelhantes
só vejo chefes e secretários
mestres e discípulos
filhos e pais
secundários e principais
amos e servidores
criados e patrões
todos iguais.
Mais uma geração a cantar construção.
Conto quatro:
um, dois, três, quatro
Todos por bem.
Eu sei, eu sei:
«não há esconderijo senão nas massas!
Os ricos que paguem!
Os pobres que morram!
não seremos pobres nem ricos
todos iguais
iguais como os semelhantes
custa muito todos semelhantes
dá no mesmo todos iguais.»
Achei altas montanhas fora da geografia
longe da perseguição
mas o meu corpo vulnerável não passa
por onde me passa a alma.

A sociedade está podre
já fede
e não lhe cheira,
o mal só se vê nos outros
só cheira nos outros:
quando o mal é nosso
pegaram-nos
é um mal estranho.
Disseram que o homem é um animal social
aí o têm
arranjaram-na bonita.
E se calhar estão todos como eu.
Quem nos teria posto em sociedade?
Quem fez de «todos» uma realidade
ou estava a pensar na lua
ou doente de paranóia.
Que linda ideia: «Todos!»
E mais ainda: «o bem de todos!»
Serei parvo ou imbecil
só entendo cada um.
Vejo até por mor de todos
dar cabo de cada um.
Não quero mal a ninguém
mas já tenho raiva a todos.
Isto de levar cada um a ter raiva a todos
é igualzinho a desejar o bem comum
lindas maneiras de eliminar a cada um.
Porque a sociedade é de alguns
alguns daqui e alguns d’acolá
«alguns» não pode deixar de ser contra alguns
é a guerra de grupos de cá e de lá
bem diferente das batalhas de cada um.
E quando nós pertencemos a um grupo
ou contra ele ou não somos de nenhum
o mesmo dá
andam connosco às voltas
e nós a zero
no cabide
esquecemo-nos de nos levar connosco
fizeram-no-lo esquecer
falaram-nos no bem de todos.
Todos! Essa conta que ninguém sabe somar
e que nos faz suar
a nós, as suas parcelas
todos juntos para simplificar
mais simples que todos é impossível
quem foi o da ideia?
Lindas maneiras de eliminar a cada um.
Em qualquer sítio onde um seja apanhado
aí mesmo o fazem soldado
e dão-lhe o sítio p’ra defender
um pedaço de terra com significação
pois que chamam civilização
andarem os homens agrupados
e como há vários lados em toda a combinação
fazem-nos parte de todos os de um lado
e não entendemos todos
que nos matam um por um por todos os lados
em nome da sociedade.
Que nos mate a morte já o sabíamos
mas que ponham o ferro a explodir
para não escapar nem um
que outro sentido poderá agora ter a morte
do que o de um acidente provocado?
Isto tira valor à morte
como à vida lhe tiraram todo o sentido
foi a tal ideia de «todos»
que pôs isto neste estado.
Pode limpar as mãos à parede
o homem que teve a ideia de sociedade
e também aquele que disse
que éramos um animal social.

José de Almada Negreiros 

in Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pp. 158/162