terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Pode-se sempre responsabilizar Hegel


Diz Keith Ward que há pessoas muito preocupadas com o que acontecerá daqui a cinco mil milhões de anos, como se, então, ainda cá estivessem. Acrescenta mesmo: «Algumas pessoas queixam-se por não viverem para sempre, mas não conseguem pensar em nada para fazer numa tarde chuvosa de Domingo.» Como a primeira parte da questão não se me aplica, vou ao que pude fazer, não numa tarde chuvosa mas numa tarde gélida de Domingo, e que foi a releitura do capítulo Marx e a dialéctica da História, do livro Deus e os Filósofos, do referido autor, que, de uma forma muito peculiar, aborda a história das ideias ocidentais. E como também estamos a viver numa época muito peculiar [Atenas já esteve a arder], nada melhor do que trazer à memória algumas ideias que estiveram subjacentes a alguns conflitos que se tornaram mundiais. O texto é longo mas, como fico horrorizada quando algo que li ou ouvi, na íntegra, apareça na comunicação social cirurgicamente cortado e descontextualizado, atribuindo-se-lhe um significado que não tinha à partida, não procedi a qualquer corte, pois, aqui, seria como cortar o raciocínio do autor.
No capítulo que mencionei, escreve: «Karl Marx (1818-83) usou a teoria de Hegel nos seus próprios escritos sobre comunismo. Mas, para o fazer, teve que virar Hegel de cabeça para baixo, nas palavras do próprio Marx. Virado de cabeça para baixo, Hegel já não consegue dizer “Espírito Absoluto”. Sempre que tenta fazê-lo, saem-lhe as palavras “materialismo dialéctico”.
Hegel tinha atribuído ao Espírito a prioridade causal em todas as coisas. É o Espírito, defendia ele, que gera o Universo, que concretiza a sua própria natureza nos acontecimentos da História, e que incorpora todas as coisas na sua própria experiência perfeita. Para Marx, a força motriz da História é a “matéria”, e por “matéria” ele não entendia os electrões ou pedaços de substância inanimada, mas antes as forças da produção e comércio económicos. A História não é conduzida a partir de cima, mas a partir de baixo, pelas forças da competição e da sobrevivência.
De acordo com a teoria da evolução de Darwin, publicada em 1859, onze anos depois do Manifesto Comunista, os animais sobrevivem porque competem pela sobrevivência num ambiente hostil, e algumas mutações afortunadas vencem essa competição por estarem melhor adaptadas ao seu ambiente. Da mesma forma, para Marx, a História é conduzida por forças de competição com o objectivo de produzir e comercializar bens. Não se trata de um progresso guiado pelo Espírito, rumo à paz e à justiça, mas um processo guiado pele ganância e caracterizado por uma implacável competição e eliminação.
Ainda assim, existe, supostamente, uma espécie de inevitabilidade no processo. Darwin, sem dúvida que influenciado pelas filosofias evolutivas que prevaleciam na época, pensava que os animais estavam destinados a adaptar-se cada vez melhor através da selecção natural, pelo que não havia nenhum limite para a sua perfeição. Assim, Marx pensou que a história económica estava destinada a desembocar numa espécie de sociedade utópica onde todos teriam o suficiente do que quisessem e todos seriam livres de fazer o que quisessem. Podem caçar de manhã, pescar durante a tarde e tratar do gado ao cair da noite, disse ele num dos seus raros momentos de feliz optimismo [a frase encontra-se na Ideologia Germânica].
Para Marx, a história é um processo dialéctico (*).
As condições económicas levam à emergência de certas formas de estrutura social, bem como de valores que lhes são apropriados e, por isso, valorizados. Assim sendo, a origem do feudalismo prende-se com a necessidade de organizar a defesa contra os inimigos, e os seus valores incluem coisas como a bravura, a honra e a lealdade ao soberano. Porém, estas condições e valores contêm o germe da sua própria dissolução, contradições internas que conduzem a uma nova forma de sociedade com valores bastante diferentes. O feudalismo levou ao surgimento de associações de camponeses, preparando assim o caminho para insurreições contra a aristocracia, que representava, no fundo, uma pequena minoria. Isto conduziu à sociedade burguesa, cujos valores eram os da classe média ou burguesia – frugalidade, trabalho árduo, acumulação de propriedade privada e respeitabilidade.
A dialéctica da História é a seguinte: cada estrutura social produzida por circunstâncias económicas enfatiza um conjunto de valores [esta é a chamada “tese”]. Isto provoca uma reacção, na qual um conjunto de valores diferente e, em larga medida, oposto, assume o poder [esta é a “antítese”]. O qual, por sua vez, faz com que o pêndulo volte, a seu tempo, a oscilar no sentido oposto. Assim, o capitalismo burguês produz grandes colectivos de trabalhadores urbanizados, que farão vingar o domínio do proletariado e os seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade. Esta oscilação será feita a um nível mais elevado, devido ao que aconteceu anteriormente, e é por isso chamada “síntese” do processo dialéctico. Essa síntese, por sua vez, torna-se uma nova tese, e a dialéctica continua.
A História é um jogo alternado de contradições, ou uma oscilação contínua entre tendências e valores opostos na sociedade. Desta forma, Marx cartografa a história humana como um progresso do feudalismo ao socialismo, passando pelo capitalismo, e terminando finalmente no comunismo. No entanto, quando chegamos ao comunismo, a dialéctica cessa porque, nesse momento, e segundo Marx, todas as contradições teriam sido ultrapassadas e reconciliadas. Toda a gente seria livre e feliz; as contradições da História teriam sido solucionadas. A verdade talvez seja mais sombria – todos os capitalistas e burgueses teriam sido eliminados. Só os proletários sobreviveriam. Já não restam pessoas oprimidas, uma vez que todos os opressores estão mortos.
A influência do marxismo na História recente tem sido tremenda. Por isso, a filosofia de Hegel não é uma mera especulação abstracta. Possui uma mensagem social poderosa e um poder motivador, pelo menos quando está virada de cabeça para baixo. Fala aos oprimidos do mundo e diz-lhes para se erguerem contra os opressores, porque têm o poder do destino do seu lado. A revolução que irão levar a cabo não é uma cruzada moral altamente arriscada. É uma simples forma de participar na inevitável dialéctica da História. A altura é apropriada e a revolução está destinada a acontecer. Após um curto período de necessária ditadura, será introduzida a sociedade sem classes da paz e da justiça, não apenas por intermédio da acção humana mas pela necessidade histórica interna.
Marx opôs-se aos poderes da religião organizada, que considerava opressiva e reaccionária. Mas esta atitude para com a religião é mais ambígua do que por vezes se pensa. Toda a gente conhece a famosa citação, “A religião é o ópio do povo”, mas não são tantos os que conhecem as frases imediatamente anteriores: “O sofrimento religioso é, simultaneamente, uma expressão de verdadeiro sofrimento e um protesto contra o verdadeiro sofrimento. A religião é o lamento da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem compaixão, e a alma das condições desalmadas” [da introdução a Princípios da Filosofia do Direito, de Hegel]. Podiam ter sido escritas por um crente devoto.
É verdade que Marx pensava que a religião concedia uma felicidade ilusória, uma promessa de abundância após a morte, em vez de felicidade aqui e agora para os oprimidos. Mas não poderá existir uma forma de religião sem ilusões? Não poderá a religião ser uma força de protesto contra o verdadeiro sofrimento, e uma afirmação da genuína liberdade e realização do ser humano?
Aos olhos de Marx, isso não acontecia com a religião do seu tempo. A religião colaborava com a opressão, abençoando os capitalistas e confraternizando com eles, enquanto que negligenciava os mineiros e os operários fabris. Aconselhava os crentes a suportar pacientemente a opressão, a orar pela felicidade no céu e, acima de tudo, a não agitar a ordem social estabelecida. Marx acreditava veementemente que a religião se deveria relacionar com o progresso dos seres humanos neste mundo e que, se existe algo como a salvação, ela deve ser possível nas condições sociais que temos actualmente, e não apenas numa Terra do Nunca imaginária.
Neste sentido, não teria o próprio Marx uma religião? Era judeu de nascimento, embora tivesse sido baptizado na infância, e a sua ênfase no carácter terreno da libertação e da salvação parece muito judaica. O Antigo Testamento não procura uma felicidade adiada no além. Menciona muito raramente qualquer tipo de além e, quando o faz, a sua aparência é muito soturna. Sheol, o mundo dos mortos, é um lugar onde os fantasmas murmuram e gemem, e a escuridão impera. A libertação está relacionada com a fuga do Egipto ou da Babilónia. Os grandes profetas são críticos sociais contra os excessos da monarquia. A era messiânica virá sobre a terra, no futuro, enquanto clímax inevitável da história humana. Isto não nos soará muito familiar, ao lermos Marx? A religião sem ilusões é a procura de justiça e de paz nas condições sociais deste mundo, associada à crença de que a sociedade justa e livre está destinada a emergir, porque assim está escrito na estrutura dialéctica da História. O seu objectivo é a sociedade livre e sem classes, o seu povo eleito é o Partido Comunista, a vanguarda do futuro, e o seu profeta é Marx.
Sabemos agora que tudo isso correu mal. Hegel de pernas para o ar não foi uma boa receita para o século XX. O Marxismo Revolucionário torturou e massacrou mais pessoas em cinquenta anos do que as chamadas religiões opressivas ao longo de gerações. Não era tarefa fácil, afinal, abdicar do Espírito e conceder a prioridade causal da História à necessidade económica. Porque é o Espírito que valida a moralidade, estabelece limites absolutos à ganância e ódios humanos, e confere um significado transcendente aos processos da História.
Segundo Marx, a moralidade é apenas a escória que as forças da produção e do comércio económicos vomitam para a superfície. Transforma-se à medida que essas forças se transformam. Não é uma força absoluta e, por isso, o objectivo da sociedade justa não é tanto um objectivo moral, mas simplesmente o desfecho necessário de um processo moralmente indiferente. Se a revolução for vista como inevitável, como obra do destino, deixa de ter limites morais. E a ditadura do proletariado, que Marx concebia como uma fase temporária destinada a precipitar a livre sociedade comunista, torna-se uma ditadura permanente de medo e conformidade perante a aceitabilidade política, da qual não há fuga possível.
Deste modo, há em Marx uma insustentável tensão entre a sua indignação com as condições dos trabalhadores industrializados na Inglaterra do início do século XIX, principalmente a sua ânsia de liberdade para os mais pobres e oprimidos, e as suas recomendações de uma revolução que levaria uma violência e um terror sem precedentes às vidas dos que ele mais queria ajudar. A combinação das crenças numa necessidade férrea da História e na inutilidade e hipocrisia da moralidade abriu, para meio mundo, o caminho ao caos.
Tudo isto, claro está, corrobora o carácter dialéctico da História. A busca unilateral de um conjunto específico de ideias conduz a um estado oposto ao desejado, e gera uma reacção que pode ser igualmente unilateral. O pólo oposto ao comunismo de Marx, e do qual o marxismo retirou grande parte do seu vigor por se assumir como seu aparente antídoto, é o fascismo (**).
Reagindo contra a rejeição marxista da “moral burguesa” da família, da propriedade privada e do respeito pela tradição, os fascistas sublinhavam a importância primordial da família e da nação [“sangue e terra”], da obediência à autoridade e da subordinação da vontade individual à vontade da comunidade. Também os fascistas podem reclamar uma origem hegeliana. Hegel escrevera que o Espírito se encontra particularizado no Espírito de um povo ou de uma cultura, e que o destino histórico de alguns povos pode ser o de precipitar uma transição entre duas fases da dialéctica histórica. Por estranho que pareça, Hegel pensava que tinham sido os prussianos [ele era prussiano] a transportar para o século XIX este destino histórico. E pensava que o propósito global de uma determinada época podia ser melhor discernido através de um grande líder [Führer] capaz de identificar o propósito do Espírito e comunicá-lo ao seu povo. Como a dialéctica da História é um processo de luta e de oposições, atingindo um estado superior de desenvolvimento através do conflito, é possível que o cultivo de uma nação forte, confiante no seu destino, subjugando o mundo à sua vontade, expresse o inexorável propósito do mundo-Espírito, o de dar à luz o Super-homem [Übermensch], o ser humano dotado de um poder e vontade extraordinários, cujo destino é ensinar e liderar [ou exterminar] os fracos [todos os outros].
Ler estas ideias tendo em mente o Holocausto e as duas guerras mundiais que assolaram o século XX provoca-nos um inevitável arrepio. Foi isto que Hegel anteviu, ou legitimou? Provavelmente, somos obrigados a dizer que existem ambiguidades no pensamento de Hegel que foram exploradas tanto pelo comunismo como pelo fascismo. Mas, como o seu trabalho foi usado de formas tão completamente opostas, talvez nenhum destes o tenha realmente compreendido. Afinal, Hegel sempre afirmou ser cristão e, enquanto cristão, tinha plena consciência da importância de uma moralidade coerciva e absoluta e da regra divina que nos manda cuidar dos fracos e dos oprimidos. No conflito paradigmático da história cristã, o herói que derrota os poderes do mal é o que dá a sua vida na cruz, e não alguém com os poderes extraordinários de um Super-homem. O mais provável é que as obras de Hegel sejam, para dizer a verdade, tão longas e entediantes que poucos as tenham lido na totalidade. As pessoas limitaram-se a retirar os excertos mais adequados às suas próprias intenções. No entanto, deve ficar bem claro que o pensamento hegeliano teve uma enorme influência prática, embora essa influência nem sempre tenha sido a melhor.
Um elemento importante é o facto de tanto o fascismo como o comunismo terem rejeitado interpretações religiosas [teístas] de Hegel, preferindo falar nas inflexíveis necessidades do próprio processo histórico. Quiseram um Hegel sem Deus, um Hegel cujo “deus” é somente o processo histórico. E isso é certamente injusto para Hegel, cuja obra, para sermos mais exactos, podemos considerar como uma reflexão [muito] alargada sobre a natureza e o objectivo de Deus.»


(*) dialéctica – uma contínua combinação de forças em oposição ou em conflito.
(**) fascismo – da palavra italiana que designa o feixe de varas amarrado em redor do machado, e que precedia os antigos cônsules romanos durante um cortejo; Mussolini adoptou-o como símbolo do movimento político autoritário e nacionalista que se organizou em 1919, em Itália, para combater o comunismo.

2 comentários:

vbm disse...

Toda a vida li e vi defender a interpretação económica da História e a prioridade da defesa da classe trabalhadora contra as demais, não-produtivas.

Só recentemente conheci uma argumentação singular a destituir aquela linha de estratégia política!

Na base de duas premissas: i) produtiva e fecunda é a natureza, a única que cria os bens que satisfazem a necessidade de subsistência dos homens; ii) produtivo é o engenho e a inteligência que adequa com eficácia o trabalho e a acção do homem à natureza.

Deste ponto de partida, deduz-se que as sociedades só podem desenvolver-se com humanidade no respeito pela natureza, a inteligência e o conhecimento da verdade.

Assumindo o trabalho como o único padrão de medida do valor, destitui-se a natureza e a inteligência, destroi-se a diversidade e subjugam-se igualitariamente os indivíduos a uma centralização esclavagista.

Maria Josefa Paias disse...

Quando ontem publiquei o comentário do Vasco, e daí o atraso na resposta, o meu cérebro estava a tentar entender como é que alguns professores universitários andavam a partilhar no FB um texto, alegadamente do grego Theodorakis (o do Zorba), em que apelava à união dos europeus do sul porque o fascismo vinha aí trazido pelos banqueiros. Pelos banqueiros?
Convém, talvez, dizer que alguns são bloquistas, comunistas e um é monárquico. Deste último não percebo muito bem as ideias que defende, embora tenha muitas vezes demonstrado, tal como os outros, uma tendência especial para a demagogia.
Voltando ao seu comentário, parece-me muita acertada a conclusão que o Vasco retirou das suas leituras: «Assumindo o trabalho como o único padrão de medida do valor, destitui-se a natureza e a inteligência, destrói-se a diversidade e subjugam-se igualitariamente os indivíduos a uma centralização esclavagista.» Estamos de facto muito carentes de "engenho e inteligência".

Abraço.