quinta-feira, 29 de março de 2012

Leitura integral de "Requiem: uma alucinação", de Tabucchi


Na próxima segunda-feira, 2 de Abril, tem início às 10:30h, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, a leitura integral do livro de António TabucchiRequiem: uma alucinação”. Para os menos familiarizados com esta obra, deixo um texto que Carlos Vaz Marques escreveu em 2009 e que dá boas pistas sobre a mesma.

«O REQUIEM QUE RI
[texto para a revista Time Out, em Abril de 2009]

Mesmo os leitores mais distraídos saberão sem dificuldade, logo nas primeiras páginas do “Requiem”, de Antonio Tabucchi, que estão perante uma obra de ficção. O narrador senta-se no jardim de Santos a ler, no jornal A Bola, o relato de uma vitória do Benfica sobre o Real Madrid, na noite anterior. Ainda para mais uma vitória fora.
Num romance em que Lisboa é protagonista e em que vivos e mortos, sonho e realidade, fantasmas e gente convivem alegremente (sim, há no “Requiem” grandes momentos de comédia), está dado o tom. O subtítulo do romance é, muito apropriadamente, “uma alucinação”.
O estrangeiro, de quem nunca saberemos o nome ao longo do livro, alter-ego evidente do próprio autor, lê A Bola enquanto faz tempo à espera que chegue “o maior poeta do século vinte”. O nome de Fernando Pessoa também nunca será referido. Marcaram encontro às doze no Cais de Alcântara, “mas talvez (ele) quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite.”
“O meu Convidado” há-de aparecer, de facto, doze horas depois, para uma ceia hilariante, com um menu de que constam pratos como “cherne trágico-marítimo, linguado interseccionista, enguias da Gafeira à moda do Delfim e bacalhau escárnio e maldizer.”
Entretanto, nas doze horas de espera, percorremos alguns dos locais emblemáticos da cidade. É um domingo de Julho, de um calor sufocante. Encharcado em suor, o narrador precisa de comprar uma camisa. Mete-se num táxi mas terá de ser ele a indicar o caminho, rua por rua, ao “Chauffeur de Táxi”, um imigrante são-tomense que está cá há pouco tempo. Isto é Lisboa.
Passamos pelo Chiado, inevitavelmente, e dirigimo-nos ao cemitério dos Prazeres, ponto de paragem obrigatória. Estamos num requiem, é bom não esquecer. Um requiem, explica Tabucchi na nota introdutória, executado “numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas.”
Havemos de passar, sucessivamente, pelo Museu de Arte Antiga, pela Casa do Alentejo, às Portas de Santo Antão, ou pelo Terreiro do Paço, sem tapumes, onde voltamos a ter consciência de que a literatura nos proporciona experiências que – pelo menos por enquanto – nós, os lisboetas de 2009, não podemos obter de outro modo: “o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento.”
“Requiem”, de António Tabucchi, é uma das mais belas cartas de amor a Lisboa das últimas décadas. Um romance que o escritor italiano compôs directamente em português. O que também, só por si, é já uma extraordinária declaração de amor.»
Carlos Vaz Marques
 

sábado, 24 de março de 2012

Fernando Pessoa: Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal


«Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal; ou, se se preferir, há três espécies de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo da nação e o da sua expansão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Este português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe também.
Outro é o português que o não é. Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o Constitucionalismo, e tornou-se completa com a República. Este português (que é o que forma grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo, e quase toda a gente das classes dirigentes) é o que governa o país. Está completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e moderno. Contra sua vontade, é estúpido.
Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por alturas de El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora. Foi-se embora em Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele. Como o último verdadeiro Rei de Portugal foi aquele D. Sebastião que caiu em Alcácer Quibir, e presumivelmente ali morreu, é no símbolo do regresso de El-Rei D. Sebastião que os portugueses da saudade imperial projectam a sua fé de que a família se não extinguisse.
Estes três tipos do português têm uma mentalidade comum, pois são todos portugueses mas o uso que fazem dessa mentalidade diferencia-os entre si. O português, no seu fundo psíquico, define-se, com razoável aproximação, por três característicos: (1) o predomínio da imaginação sobre a inteligência; (2) o predomínio da emoção sobre a paixão; (3) a adaptabilidade instintiva. Pelo primeiro característico distingue-se, por contraste, do ego antigo, com quem se parece muito na rapidez da adaptação e na consequente inconstância e mobilidade. Pelo segundo característico distingue-se, por contraste, do espanhol médio, com quem se parece na intensidade e tipo do sentimento. Pelo terceiro distingue-se do alemão médio; parece-se com ele na adaptabilidade, mas a do alemão é racional e firme, a do português instintiva e instável.
A cada um destes tipos de português corresponde um tipo de literatura.
O português do primeiro tipo é exactamente isto, pois é ele o português normal e típico. O português do tipo oficial é a mesma coisa com água; a imaginação continuará a predominar sobre a inteligência, mas não existe; a emoção continua a predominar sobre a paixão, mas não tem força para predominar sobre coisa nenhuma; a adaptabilidade mantém-se, mas é puramente superficial — de assimilador, o português, neste caso, torna-se simplesmente mimético.
O português do tipo imperial absorve a inteligência com a imaginação — a imaginação é tão forte que, por assim dizer, integra a inteligência em si, formando uma espécie de nova qualidade mental. Daí os Descobrimentos, que são um emprego intelectual, até prático, da imaginação. Daí a falta de grande literatura nesse tempo (pois Camões, conquanto grande, não está, nas letras, à altura em que estão nos feitos o Infante D. Henrique e o imperador Afonso de Albuquerque, criadores respectivamente do mundo moderno e do imperialismo moderno) (?). E esta nova espécie de mentalidade influi nas outras duas qualidades mentais do português: por influência dela a adaptabilidade torna-se activa, em vez de passiva, e o que era habilidade para fazer tudo torna-se habilidade para ser tudo.» 

In Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão) Lisboa, Ática, 1979.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Leonard Cohen: Going home

Ana Hatherly: O jogo é um itinerário


Na minha oficina herética
o labirinto contraria o linear:
percorre-me
como se fosse uma veia
segura em seus meandros

A não-necessidade, o que seria?
que nova desordem criaria?
que outras descobertas?

A fugaz eternidade das ideias-mestras
incessante refaz os jogos da racionalidade
mas o jogo é um itinerário
e a sedução do rigor
recoloca-nos incessantemente na senda do desejo.

Ana Hatherly

in Itinerários, Edições quasi, 2003

segunda-feira, 12 de março de 2012

Se Séneca o diz...


«Se não me engano, foi Cúrio Dentado que disse que preferia morrer do que viver morto: o pior dos males é sair do mundo dos vivos antes de morrer. Mas, se vivemos num tempo em que a vida pública é intratável, devemos dedicar-nos sobretudo ao ócio e às letras, tal como, numa perigosa travessia, se anseia constantemente alcançar o porto; nem esperes que os assuntos te abandonem, liberta-te deles por ti próprio.» (*)

Este conselho de Séneca deve ter ficado tão bem gravado no meu espírito que agora, ao relê-lo, me apercebo que é exactamente o que tenho feito ultimamente, ou seja, que não tenho esperado que os assuntos públicos, de entre os quais os da política diária, (ou talvez fosse mais apropriado dizer, da politiquice diária) me abandonem, mas que tenho sido eu a libertar-me deles, não acrescentando nem mais uma linha ao que escrevi há alguns meses sobre o que me parecia verdadeiramente importante para o nosso futuro enquanto país. E é o todo que continua a interessar-me, não os “fait divers”.


(*) Lúcio Aneu Séneca, in A Felicidade e a Tranquilidade da Alma, Ésquilo Edições, Lisboa, 1.ª edição, 2006, p. 78, V. 5.

sábado, 10 de março de 2012

José de Almada Negreiros: Panfleto Social


Eh comunistas! Eh fascistas!
Eu sei, eu sei:
«Não há esconderijo senão nas massas»!
Assim mesmo necessitais de inimigos.
Chamais construir: eliminar inimigos.

                       * * *
Volto à leviandade
a essa acrobata mágica
que realiza como a imaginação
volto ao meu poder
à minha colaboração terrena
volto às gaffes
ponho outra vez os meu olhos
inconvenientes como o amor
e tiro aliviado os óculos sociais
graduados de conveniência
e com os aros oficiais.
Desisto do escritor
prefiro o protagonista do livro do autor
fujo de casa e escondo-me na rua
fujo do nome e mais do renome
não há esconderijo senão nas massas.
A Arte só vale quando todos forem artistas
e não só os privilegiados
esses que responderam à chamada.
Morro farto de procurar semelhantes
só vejo chefes e secretários
mestres e discípulos
filhos e pais
secundários e principais
amos e servidores
criados e patrões
todos iguais.
Mais uma geração a cantar construção.
Conto quatro:
um, dois, três, quatro
Todos por bem.
Eu sei, eu sei:
«não há esconderijo senão nas massas!
Os ricos que paguem!
Os pobres que morram!
não seremos pobres nem ricos
todos iguais
iguais como os semelhantes
custa muito todos semelhantes
dá no mesmo todos iguais.»
Achei altas montanhas fora da geografia
longe da perseguição
mas o meu corpo vulnerável não passa
por onde me passa a alma.

A sociedade está podre
já fede
e não lhe cheira,
o mal só se vê nos outros
só cheira nos outros:
quando o mal é nosso
pegaram-nos
é um mal estranho.
Disseram que o homem é um animal social
aí o têm
arranjaram-na bonita.
E se calhar estão todos como eu.
Quem nos teria posto em sociedade?
Quem fez de «todos» uma realidade
ou estava a pensar na lua
ou doente de paranóia.
Que linda ideia: «Todos!»
E mais ainda: «o bem de todos!»
Serei parvo ou imbecil
só entendo cada um.
Vejo até por mor de todos
dar cabo de cada um.
Não quero mal a ninguém
mas já tenho raiva a todos.
Isto de levar cada um a ter raiva a todos
é igualzinho a desejar o bem comum
lindas maneiras de eliminar a cada um.
Porque a sociedade é de alguns
alguns daqui e alguns d’acolá
«alguns» não pode deixar de ser contra alguns
é a guerra de grupos de cá e de lá
bem diferente das batalhas de cada um.
E quando nós pertencemos a um grupo
ou contra ele ou não somos de nenhum
o mesmo dá
andam connosco às voltas
e nós a zero
no cabide
esquecemo-nos de nos levar connosco
fizeram-no-lo esquecer
falaram-nos no bem de todos.
Todos! Essa conta que ninguém sabe somar
e que nos faz suar
a nós, as suas parcelas
todos juntos para simplificar
mais simples que todos é impossível
quem foi o da ideia?
Lindas maneiras de eliminar a cada um.
Em qualquer sítio onde um seja apanhado
aí mesmo o fazem soldado
e dão-lhe o sítio p’ra defender
um pedaço de terra com significação
pois que chamam civilização
andarem os homens agrupados
e como há vários lados em toda a combinação
fazem-nos parte de todos os de um lado
e não entendemos todos
que nos matam um por um por todos os lados
em nome da sociedade.
Que nos mate a morte já o sabíamos
mas que ponham o ferro a explodir
para não escapar nem um
que outro sentido poderá agora ter a morte
do que o de um acidente provocado?
Isto tira valor à morte
como à vida lhe tiraram todo o sentido
foi a tal ideia de «todos»
que pôs isto neste estado.
Pode limpar as mãos à parede
o homem que teve a ideia de sociedade
e também aquele que disse
que éramos um animal social.

José de Almada Negreiros 

in Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pp. 158/162

sexta-feira, 2 de março de 2012

Giorgio Agamben em debate no Porto

Nos próximos dias 8 e 9 de Março, realiza-se um colóquio sobre o pensamento de Giorgio Agamben, no Centro Unesco do Porto, Rua José Falcão, 100, com entrada livre, de que transcrevo o programa completo:


Programa
Colóquio/ jornadas de estudo
sobre o pensador italiano contemporâneo
Giorgio Agamben (n. 1942)
 
Dias 8 e 9 de Março de 2012 – Centro Unesco do Porto – Rua José Falcão, 100 – colaboração da Fundação Eng.º António de Almeida, Porto – organização da SPAE e da ADECAP (associações científicas e culturais sem fins lucrativos sedeadas no Porto).
 
Entrada livre sem necessidade de inscrição prévia.
Coordenação conjunta de Vítor Oliveira Jorge e de
Luís Carneiro
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Dia 8. Quinta-feira

9h00 Vítor Oliveira Jorge – Breve apresentação de Giorgio Agamben na perspectiva de uma pessoa sem formação em filosofia: por que interessa tanto a todos este pensador contemporâneo?

9h30 Luís Carneiro – Breve apresentação geral da obra/ perfil filosófico de Giorgio Agamben

10h00 Cíntia Gil – Considerações sobre o contemporâneo
10h30 Gonçalo Leite Velho - Indelével: Gesto, Memória e Cinema

Debate (11h00-13h00)

15h00 André Dias – Contra a vontade

15h30 Rossana Mendes Fonseca – Assinatura, Enunciado, Arquivo

16h00 Viriato Porto – A comunidade que vem, ou o pós-anarquismo de Agamben

Debate (16h30-18h00)
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Dia 9. Sexta-feira

9h00 Maria José Barbosa – A experiência como mistério – leitura da história segundo Agamben
9h30 Joana Alves Ferreira – Homo qua Homo. O lugar singular de um corpo aprisionado. A obra “O Aberto” de Giorgio Agamben no contexto da relação entre homem e natureza, entre homem e técnica e entre natureza e história
10h00 Ana Vale – Paradigma e emergência em Arqueologia. Uma leitura dos textos: O que é um paradigma e Arqueologia Filosófica de Giorgio Agamben
10h30 Sérgio Gomes – O Passado, os Indícios e as Pistas: um cruzamento da leitura de Giorgio Agamben, Michel de Certeau e Tim Ingold

Debate (11h00-13h00)

15h00 Pedro A.H. Paixão – A questão das «medialidades puras» em Giorgio Agamben
15h30 Jorge Leandro Rosa – O messiânico como crise do pacto arcaico
16h00 António Caselas – A vida indomável, para além da regra e do direito

Debate final (16h30-18h00)