segunda-feira, 28 de abril de 2014

Vasco Graça Moura, "Zeus e o destino"



porque ele tem a sua morte anunciada,
porque de pentesileia o trespassou
o olhar agonizante e eu o canto
fugaz e reiterado como um brilho no bronze,
porque este é um dos meus versos mais amados
da ilíada quando, no canto sexto, helena
de tróia exclama a lamentar-se "zeus
deu-nos um destino infeliz para que, mais tarde,
os homens nos cantassem", a desoras
não sei se estas certezas nos trarão
como as marés acasos hesitantes,
nocturnos objectos de desejo,
coisas nenhumas e pequenos nadas,
mas sei de captações contraditórias,
harpas de sombras íntimas tocando
o mais verbal da vida, o nervo dela.
é quando se transforma, quente e denso,
o coração num desafio ao mundo
e tudo leva a tudo e transfiguram-se
a memória, as imagens, o real inesperado.


1. Zeus e o destino, in Sombras com Aquiles e Pentesileia, Quetzal, 1999 

Vasco Graça Moura (3/1/1942 – 27/4/2014)

1 comentário:

vbm disse...

Graça Moura era do Porto, como eu. Nunca falei com ele, mas conhecia quem o conhecia. Apenas uma vez estive numa reunião de pais, numa creche da Foz, onde ambos tínhamos crianças. Jamais esqueci a fluência verbal e a pertinência lógica da sua argumentação contra alguma desatenção ou imprevidência da direcção em garantir a segurança das crianças, com uma tal soma de razões sofisticadas, encadeadas sem fim numa crítica demolidora que todos estavam estupefactos - eu estava, impressionado! Dizem que só Adelino Amaro da Costa se lhe comparava em retórica. E pessoalmente, um tal poder de argumentação e encadeamento de razões e advertências, apenas vi uma outra vez, na pessoa do engº Carlos Melância, numa reunião de empresa com comissões de trabalhadores: Cada enunciado, um alçapão lógico, nenhum compromisso assumido! É fantástico o poder e a propriedade da palavra.

Bonito, porém, era rasgar o Acordo Ortográfico, tão vergonhoso!