Há três anos deixei aqui expressa a minha satisfação pelo
conteúdo do memorando de entendimento entre a troika (UE, BCE e FMI) e o Estado
português, que elencava pormenorizadamente os ajustamentos a efectuar na sua estrutura,
e que eram condição para que a ajuda financeira fosse disponibilizada. Do mesmo
modo, expressei agrado pelo conteúdo do programa do governo, uma vez que
reflectia o conteúdo daquele. Deixei também alguns apontamentos sobre a minha
incredulidade face a reacções colectivas de alguns cidadãos, porque me era, e
continua a ser, difícil entender como estavam e estão completamente a leste da
verdadeira situação do país. E como não gosto de me repetir, deixei de escrever
sobre o assunto, interessando-me apenas em acompanhar e analisar se o governo
estava a cumprir o estipulado no referido memorando e respectivas
actualizações, e tanto me tem bastado, apesar dos obstáculos que foram surgindo
nestes três anos de ajustamento que agora se completam. Aliás, muitos mais
obstáculos surgirão, porque o que se fez não é nada comparado com o que o país
precisa.
Não foi Gabriel García Marquez, homenageado recentemente
devido à sua morte, quem disse, depois de ter estado em Portugal em 1975, que
“Portugal não produzia nada, senão portugueses” (e actualmente, nem isso, digo
eu)? E nem sei se ele sabia alguma coisa sobre a qualidade de muitos desses
portugueses que ainda “produzíamos”, mas admito, dadas as características da
sua literatura, que até tenha gostado do nosso lado fantasioso. Só que esse
lado é incompatível com a construção diária de um país, de qualquer país, e
mais ainda com a reconstrução de um país, e é isso que é necessário fazer com o
nosso. Porque uma coisa é construir bem, seja o que for, desde o início, outra
coisa é desfazer o que está errado e substituí-lo por algo melhor, dificuldade
que se acentua se esse país tiver séculos de História, ao longo dos quais
muitos dos seus cidadãos, imitando muitos dos seus dirigentes, o que acumularam
foram vícios, que conduziram a dívidas, e foram estas que nos levaram, em
poucas décadas, a três resgates de bancarrota iminente.
Conhecendo-nos como nos conhecemos, ou, mais prosaicamente,
sabendo-se o que a casa gasta, não li, nem ouvi uma única proposta séria para
que a sociedade debatesse que país quer, quais as funções que o Estado deve
desempenhar e quais os assuntos onde o Estado nem se deve meter, etc., etc. Do
que se fala a toda a hora é sobre uma proposta de reforma do Estado a
apresentar pelo governo, governo que, nos últimos três anos, tem estado imerso
no memorando 24 horas por dia, tal a quantidade de itens que ele contém para
cumprir nos prazos estipulados. Mas como é que isso seria possível? Além do
mais, a reforma do Estado não é assunto de governos, mas de toda a sociedade, e
estes três anos podiam ter servido também para se fazer esse debate e não estar
à espera que um governo tome essa iniciativa. A única “iniciativa” de qualquer
governo deverá ser a de gerir com parcimónia o dinheiro dos contribuintes sem
nunca esquecer que o mundo em que vivemos é real e que todas as acções têm
consequências. Quem gostar de fantasiar que fantasie, desde que não faça parte
de governos ou de oposições responsáveis.
Não abordei o modo como vamos sair do programa de
ajustamento, porque não lhe atribuo grande importância, dado que, e mais uma
vez, sabendo o que a casa gasta, felizmente temos o tratado orçamental que nos
obriga a mantermo-nos nos carris, além da vigilância dos nossos credores. Sobre
a questão da perda ou recuperação da nossa soberania só me posso rir, já que a
partilhámos quando aderimos à comunidade, agora União Europeia, e porque, como escrevi
noutro texto, nenhuma pessoa ou país sobreendividado se pode considerar livre.
A única coisa soberana que temos é a dívida – a dívida soberana, resultado de
erros também soberanos.
© Maria
Paias
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