sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Frederico Lourenço, Utopia setecentista em Jerusalém



«A literatura do século XVIII não é só punhos de renda e saias em balão. Também não é só o cinismo de Valmont nas “Ligações Perigosas” (1782) nem só a exaltação suicidária de Werther (1774). Para lá do mártir judeu António José da Silva ou do libertino Casanova (e diferentemente de Samuel Johnson ou de Voltaire) há um homem-mundo chamado Lessing. E não há melhor ponto de partida para se considerar esta fascinante figura do que a sua peça “Nathan o Sábio” (“Nathan der Weise”). Publicada em 1779 mas só representada, já depois da morte de Lessing, em 1783, este drama supremo do Humanismo, este apelo à reconciliação das três grande religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islão) não só estilhaça todos os lugares-comuns sobre a literatura setecentista como, em 2014, não podia ser mais actual.
A acção da peça desenrola-se em finais do século XII, na cidade das Três Religiões, Jerusalém, num momento histórico em que perfazia mais ou menos vinte anos que o Papa se dignara admitir a existência de um pequeno país chamado Portugal. Em Coimbra, na altura a capital portuguesa, reinava Sancho, primeiro de seu nome. Em Jerusalém reinava Saladino, o feroz déspota muçulmano, que a tradição romanesca sempre gostou de pintar com cores de nobreza sanguinária.
Mas Saladino, antes mesmo de começar a peça “Nathan o Sábio”, acabara de ter um gesto não-sanguinário que deixara a cidade de Jerusalém estupefacta. Salvou da pena de morte um jovem cavaleiro templário cuja cabeça já estava no cepo. Jovem templário esse cuja primeira acção, após o indulto inesperado do sultão, é salvar das chamas uma jovem judia – a filha adoptiva de Nathan, o sábio judeu protagonista da peça. Logo antes, portanto, de a trama da peça começar, temos estes gestos inusitados de compreensão e de tolerância da parte de um muçulmano para com um cristão e da parte de um cristão para com uma (alegada) judia.
Seria pena contar aqui o enredo desta obra dramática fascinante; não quero estragar a leitura a quem não a tenha lido ainda. Não deslustrarei, contudo, a teia de ingredientes bem aristotélicos (peripécia, catástrofe, anagnórise) se referir aqui o momento-chave deste drama, que ocorre quando o judeu Nathan conta ao sultão a História dos Três Anéis.
Havia outrora um anel que detinha o poder de tornar quem o usava amado à vista de Deus e dos homens. Este anel foi passando de geração em geração, até que um pai de três filhos quis deixá-lo àquele dos três a quem ele mais amava. No entanto, apercebeu-se antes de morrer que amava os três filhos de forma igual. Assim, mandou fazer em segredo duas cópias do anel sagrado e, no leito de morte, deu um anel a cada filho, já insciente de qual era o verdadeiro anel. Os próprios filhos, incompatibilizados entre si, esforçam-se por descobrir qual dos três anéis é o verdadeiro – aquele que daria ao seu possuidor o poder mais legítimo. Mas as cópias estavam tão bem feitas que era impossível distinguir os anéis entre si. Por fim, litigando uns contra os outros perante um sábio juiz, ouvem da boca deste a sentença, segundo a qual o que conta é o amor com que o pai legou os anéis aos três filhos amados, pelo que das duas uma: ou os três anéis têm de ser considerados falsos; ou então são os três verdadeiros.
Esta belíssima parábola tem como referente óbvio as três religiões: Judaísmo, Cristianismo e Islão. Nenhuma das três é “a verdadeira”, porque cada uma das três é verdadeira. Mais: nas palavras do juiz, as três religiões são necessárias e requeridas por Deus. “É possível que o Pai já não quisesse em sua casa a tirania do único anel”.
Muito à frente do seu tempo e – como as tensões persistentes entre judeus, muçulmanos e cristãos ainda hoje provam – muito à frente do nosso, este extraordinário texto de Lessing constitui um convite à reflexão e desafia-nos a considerar o fenómeno religioso sob o prisma das Luzes. Prisma de que continuamos ainda tão precisados hoje no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, o enredo da peça pretende confirmar a importância da consciência individual; a importância da escolha que cada um faz e que os outros têm de respeitar. No meio de tantos pensamentos ousados e de tantas frases arrojadas com que nos deparamos em “Nathan o Sábio”, há uma expressão que me parece constituir o arrojo supremo: “ninguém deve ser obrigado a nada” (“niemand muss müssen”). Em 2014, temos tanto a aprender com este texto de 1779.»

Frederico Lourenço (texto publicado hoje no Facebook)

1 comentário:

António Je. Batalha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.