sábado, 9 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Bernardo Soares (homem de acção vs homem sensível)

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção - a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte - ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha, embora esteja mal disposto, é um subsidiário da acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. «Tenho pena do tipo», disse-me ele. «Vai ficar na miséria.» Depois, acendendo o charuto, acrescentou: «Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim» - entendendo-se qualquer esmola - «eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.»
O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.
Como o patrão Vasques são todos os homens de acção - chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.

de Livro do Desassossego, texto 303, ou p. 258/60 da 3.ª edição da Assírio & Alvim.

12 comentários:

Maria Ribeiro disse...

MARIA JOSEFA PAIAS: parabens pela publicação desse texto. Tudo quanto sirva para dar a conhecer PESSOA ,nunca é demais.
ABRAÇO DE LUSIBERO

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
E se o Pessoa vivesse nos dias de hoje ?
Certamente que o binómio sensabilidade/hipocrisia seria uma das fontes de escrita.
Não se pode dizer que este texto seja premonitório, uma vez que o Homem-Ser não mudou na sua essência no decorrer dos tempos, mas sim de antevisão precisa dos nossos tempos. Aliás, isso é bem aflorado no episódio do patrão Vasques, o que nos dias de hoje é lugar comum.
Mais um grande texto.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Maria Ribeiro, muito obrigada pelo seu comentário e pela força que me dá na divulgação da obra de Pessoa.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel, devo confessar que o meu propósito era precisamente a descrição da actuação do patrão Vasques para ilustrar o comportamento de um homem de negócios que desconhece o que é a ética, mas resolvi transcrever o texto todo porque era necessário ver que à partida Bernardo Soares só admite duas trincheiras: a dos homens de acção e a dos homens sensíveis. Para ele não há o meio termo que é o dos homens de negócios (de acção) com um comportamento ético, que, ao contrário do patrão Vasques, quando negoceiam com alguém o fazem em benefício de ambas as partes, não se aproveitando das fragilidades de ninguém. E isso é que é um assunto actual: a ética nos negócios, na política, nos relacionamentos com os outros, e é isso que demonstra ou não que se pode ser um homem de acção e sensível simultâneamente.
Obrigada e um abraço.

Paulo Lobato disse...

Maria Josefa, tenho de admitir que li por 2 vezes o texto, exactamente porque no meu pensamento existe espaço para o "homem de acção/sensível", e esse eu não o encontrava em lado algum.
Encontrei apenas a generosidade caridosa "aliviadora" de consciências; e essa, muitas vezes, apenas cria uma falsa ilusão de sensibilidade.
Tal como escreve, também eu acredito que um bom negócio só acontece quando é vantajoso para ambas as partes; quando um aperto de mão é mais do que uma mera formalidade.
E também penso que a política deve ser um jogo de forças e não de fraquezas.
Por isso é importante, e esse é o desafio, que sempre que tal não acontece sejamos capazes de o dizer; muitas vezes não é fácil (porque é mais cómodo) mas é importante que tal suceda.
um abraço

(eu como sou mais ligado aos números do que às palavras preciso de mais tempo com estes textos do Pessoa)

A.C.Valera disse...

É, de facto, um tema universal e, como tal actual. Lembra um clássico, O Último dos Barões, ou ´Príncipe de Maquievel, sendo o primeiro um lamento daquilo que o segundo propõe.
Apenas acrescentaria que, tendo o post sido orientado para a questão dos negócios, se aplica a qualquer vertente da vida, a qualquer tipo de relação.
E acção,apesar de ter sempre uma componente inconsciente, tem sempre também uma componente consciente, de volição, logo, quando se age, age-se em função das opções que reconhecemos. Agir terá, assim, sempre uma componente Ética. Só que Ética não é sinónimo de Bom ou de Mau. Mas de "código de conduta". E estes dependem de valores, que não são os mesmos para todos, nem se manifestam em todos da mesma maneira.
Por isso sempre me interessou essa "estranha" capacidade que, por exemplo, o mafioso tem de ser "patrão Vasques" para uns e extraordinariamente dedicado e sensível para outros.
São os jogos de identidade a funcionar, e que permitem ser coisas diferentes em contextos diferentes.
Sensibilidade e contemplação não são opostos da acção, apenas a informam de maneiras múltiplas.
Camões, o guerreiro poeta.
O "Homem é o Lobo do Homem" ou o "Homem é Naturalmente Bom" são duas versões de um mesmo Direito Natural.

Maria Josefa Paias disse...

Paulo, inicio a minha resposta pelo que escreveu entre parênteses para lhe dizer que aprecio muito quem tem a capacidade de dizer em uma ou duas frases aquilo que é realmente importante e pertinente e, por isso, aprecio o que escreve porque tem essa capacidade de síntese, que, quem sabe, lhe advém do tipo de trabalho que faz. Já o que podemos designar por palavreado pseudo-filosófico torna-se-me cansativo.
Indo ao seu comentário, só lhe posso agradecer a partilha dos mesmos pontos de vista bem como o ter referido "a generosidade caridosa aliviadora de consciências" (para quem tem consciência, acrescento eu), porque me escapou :)
Obrigada e um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

António, concordará que, em linguagem comum, quando dizemos que uma pessoa teve um comportamento ético, entendemos que esse comportamento terá sido correcto, que o valorizamos como bom, modelar. O do mafioso poderá ser considerado "bom" pelos seus iguais, "a família", mas não deixarão de ser comportamentos criminosos, desviantes, éticamente reprováveis. Não consigo imaginar a maioria dos pais a desejarem que os seus filhos sejam mafiosos em adultos, porque ser-se mafioso não é algo de "exemplar", não serve como modelo a seguir.
Obrigada e um abraço.

A.C.Valera disse...

Naturalmente, Maria Joseja. Como dizia alguém a propósito da contingência: as histórias são múltiplas, mas apesar de tudo, Auschwitz continua a ser uma aberração. Mas não era disso que eu falava, antes das contradições que existem em todos nós. Desculpe a interferência.
Obrigado e um abraço também.

Maria Josefa Paias disse...

António, não peça desculpa pela "interferência". As interferências e os cruzamentos de pensamentos distintos dos nossos são essenciais para pôr à prova as ideias individuais, cimentando-as ou modificando-as.
Por favor, interfira!
Abraço :)

Nicolina Cabrita disse...

Olá, Maria Josefa. Bom Ano! :-)

Não sei se o nosso Aristóteles concordaria com este texto do Pessoa/Bernardo Soares, que me parece muito influenciado por uma realidade muito específica...
Ainda assim, gostei de ler.
Bjs

Maria Josefa Paias disse...

Nicolina, muito obrigada e bom ano para si também!
O nosso Aristóteles, como já ficou demonstrado pelos excertos que publiquei da suas obras sobre Ética, encontra sempre no meio termo a atitude mais adequada de entre os diversos comportamentos que analisa. Certamente que encontraria neste texto de Bernardo Soares a falta desse meio termo também.
Beijinho.