domingo, 11 de julho de 2010

Fernando Pessoa/ Bernardo Soares (A ideia de viajar nauseia-me)

A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos - uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.

De Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 3.ª edição, Lisboa, 2008, p. 131 (texto 122)

3 comentários:

Manuela Freitas disse...

Eu compreendo o Bernardo Soares, eu também tenho dias assim, tudo me parece complicado, desnecessário, inútil...hoje ando por aí, mas amanhã pode ser outro dia!...
Até pode ser mais complicado, quando uma pessoa tem dias assim e outros dias não, porque este bamboleio, pode causar náuseas!...
Beijinhos,
Manuela

Benjamina disse...

Josefa

Por muito que goste de ler Pessoa, não consigo deixar de ficar satisfeita por não ter chegado nem ter capacidade de chegar ao grau de tédio que a visão do alto lhe dava

É tão bom maravilharmo-nos com a natureza, as paisagens, as boas pessoas, enfim, as coisas boas da vida. E viajar. Pudesse eu viajar muito (e sem causar grandes emissões)...
É tão bom não ter perdido ainda a alegria e a inocência.

Beijinhos

Maria Josefa Paias disse...

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Manuela e "Benjamina",

Como o autor, na obra citada, página 64, (texto 38), diz: «Invejo a todas as pessoas o não serem eu. Como de todos os impossíveis, esse sempre me pareceu o maior de todos, foi o que mais se constituiu minha ânsia quotidiana, o meu desespero de todas as horas tristes", por certo ficaria muito aliviado na sua ânsia e desespero quotidianos ao saber que não são "ele" e que, aqui, poderei acrescentar que também não são "como ele".

Também estou certa que ele, ao saber da felicidade dos outros, principalmente da da "Benjamina", seria o primeiro a congratular-se com isso, porque ele não diz que inveja a felicidade dos outros mas o facto de não serem ele, de não carregarem o seu fardo. Não deseja para os outros os seus sofrimentos e perplexidades.

Continuação de uma vida feliz e beijinhos.