sábado, 13 de fevereiro de 2010

Fernando Pessoa - A doença da disciplina


«Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja – e eu não creio que a disciplina seja boa -, por força que há-de ser prejudicial.

Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.

Parecemo-nos muito com os alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.

Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade – acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam com a vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.

Diferimos dos alemães, é certo, em certos pontos evidentes das realizações da vida. Mas a diferença é apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamentalmente neles com em nós, a um sistema de estado e de governo; ao passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes, nunca infligimos a nossa rude disciplina social, especializando-a para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente entregue ao próprio vulto integral da sociedade. De aí a nossa decadência!

Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma “revolução” foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchamos essa revolução com a brandura com que tratamos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficamos miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e fingimento.

Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.

Trabalhemos ao menos – nós, os novos – por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio e no dissolvente. E a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica.»


Fernando Pessoa / Ideias Políticas


(sublinhados meus)


13 comentários:

Anónimo disse...

Cara Maria Josefa,

muito interessante teu blog! Vários assuntos; caleidoscópicos! Vou acompanhá-lo.
Abraços fraternos!

Maria Josefa Paias disse...

Amílcar Bernardi,

Muito obrigada pelas suas palavras e fico feliz por este meu espaço lhe ter agradado.

Um abraço.

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
Eis uma das excepções !
Eu, que como sabe adoro o Pessoa Poeta detesto o Pessoa Político.
Como político, Pessoa não é exemplo para ninguém.
É, para mim, assim como um Vasco Graça Moura da primeira trintena de anos do sec. XX.
Um abraço.

Benjamina disse...

Josefa
Texto espantoso! Para a Alemanha, entretanto, tudo mudou, foi a guerra, a destruição, a separação a reconstrução, a união... Outros tempos, muitas décadas de passaram...
Em Portugal, afinal, está tudo na mesma.
Se calhar, Pessoa tem razão. Só uma verdadeira agitação indisciplinada que nos faça chegar ao fundo do poço poderá mudar alguma coisa... infelizmente.
Um abraço

Maria Josefa Paias disse...

"Olá Josefa

Bem lá longe, num universo tão diferente, o Amilcar pensa o mesmo que eu.

Ora aqui está um texto veemente do Pessoa cáustico e crítico dos atavismos do povo que ele viu como guia do mundo, aquele que seria capaz de materializar o Quinto Império.

Descontemos as generalizações que são sempre dificeis de corroborar. Nesse sentido, não diminuamos o valor analítico do Autor pelo que devemos registar que se trataram mais de textos de arrumação de ideias pessoais, sem a pretensão do rigor científico que a sociologia já então permitia.
Mas não é por isso que deixa de ser uma peça muito boa e em ela se nota o vigor e a beleza da prosa pessoana, quasi tão vasta quanto a sua poética.

Parece-me também que o vocábulo disciplinados tem um valor diferente daquele que hoje em dia lhe atribuímos. Diria que mais no sentido de auto-controlados, ensimesmados, até, ou algo no âmbito da reunião das duas ideias.
O que acha?

Com os sublinhados, a Josefa quer que meditemos nas palavras do Poeta. Bons destaques, direi então. Mas pensamentos que requerem uma reflexão mais demorada. Demos-lhe então o espaço que merecem e dediquemos-lhe algum do nosso tempo. Depois, poderemos voltar ao assunto.

Tenha um fim-de-semana em paz e com muita saúde

Rudolfo Wolf"

Lamento mas não tenho os requisitos que a caixa de comentário pede.

Infelizmente, escusado será tentar agradecer a sua gentileza no comentário ao post sobre limpar Portugal. Também isso o faço nesta ocasião.

Quanto ao que a sua amiga pede, devo dizer que o que escrevi está à vossa disposição para o usarem onde entenderem. Foram palavras que me saíram no momento e por isso simples. Só posso ficar grato pelo interesse que mostraram pelas mesmas. Faça pois o que achar melhor com elas.

Não me leve a mal, mas se não faço o agradecimento no espaço da caixa de comentários é por não encontrar maneira de solucionar o problema de que falei. Por favor, faça saber junto da sua amiga, pois, ainda que gostasse, não posso ser eu a fazer.

Mais uma vez me vejo obrigado a apresentar mil desculpas por todos os incómodos que lhe estou a causar, mas prometo que me informarei sobre o modo de ultrapassar este problema. Estou sinceramente desolado por isso.

Desejo-lhe muita paz e saúde,

Rudolfo Wolf

Maria Josefa Paias disse...

Miguel, muito obrigada e, como sempre, respeito a sua opinião.
O que não entendo muito bem é o facto de ter gostado, há dias, de um texto de Eduardo Lourenço onde expõe as nossas idiossincrasias como povo, e quando é Fernando Pessoa a fazer o mesmo, não o suporta. E tanto um como outro texto contêm características nossas que se mantêm actuais.
Mas o Miguel terá as suas razões, que desconheço, mas que é meu dever respeitar.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina,

Longe de mim a ideia de guerras, de agitações, de anarquias, a não ser as de pensamento, as de desinquietação, as de colocar "areia na engrenagem" das situações que parecem estar num beco sem saída, e sempre que possível através de textos como este que nos obriguem a olhar para dentro de nós mesmos e avaliarmos até que ponto evoluímos como sociedade.
Beijinho.

Maria Josefa Paias disse...

Rudolfo Wolf,

Como vê, fiz com este seu comentário, o que fiz com o anterior, e eu é que agradeço toda a sua gentileza.

Este texto de Pessoa fez-me recordar a nossa troca de impressões no blogue colectivo sobre as elites de pensamento, quando Pessoa diz que quando aparece alguém que se destaca, depressa tudo fica igual quando essa pessoa resolve formar ou entrar para um Partido e, nestes casos, são absorvidos pela disciplina partidária. E não é isso que continua a acontecer nos nossos dias?
Quanto à questão da responsabilidade sobre o que se diz ou o que se faz, não continuamos a apontar terceiros como "culpados", os chamados "bodes expiatórios"?
A disciplina, no sentido em que Pessoa a usa, vejo-a como uma crítica às pessoas que constantemente aderem às posições maioritárias, sem se questionarem se são as correctas mas apenas porque são maioritárias, porque, como também diz Schopenhauer, as pessoas preferem morrer a pensar pela sua própria cabeça. Em breve publicarei excertos de uma obra deste filósofo no blogue colectivo precisamente sobre isto.

E, como diz, este texto fornece-nos muita matéria para reflexão que não cabe toda numa caixa de comentários.

Quanto ao Limpar Portugal, como estes comentários também são lidos pela Manuela, ela já tomou nota das suas amáveis palavras e que também agradeço.

Muito obrigada e um abraço.

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
É sempre um gosto argumentar consigo. E porque a consideração que tenho para com a Maria Josefa é muita, retorno ao assunto só para esclarecer um ponto:
Eduardo Lourenço mantém, e tem mantido, uma linha coerente de pensamento polítco ao longo da sua vida.Daí a minha admiração.
Pelo que li, até hoje, dos textos políticos e sobre a prática do nosso querido Poeta Pessoa já não posso dizer o mesmo.
É essa a diferença que me obriga a fazer este parêntesis de na minha admiração.
Um grande abraço.

Anónimo disse...

Maria Josefa,

continuo acompanhando os comentários sobre o Grande Fernando Pessoa. Ele é grande porque ainda ( e talvez para sempre)nos instiga.
Não sou lusitano, portanto, estou aprendendo com as falas de todos.
Abraços

Rudolfo Wolf disse...

Viva Maria Josefa,

Fico reconhecido pela sua paciência e a generosidade com que trata as minhas palavrinhas.

É isso, Josefa, infelizmente está muito sedimentada entre nós a cultura do "sacudir a água do capote" e isso é uma das nossas tragédias e seguramente um dos factores que nos impedem de sermos bem sucedidos em termos de desenvolvimento. É uma mágoa.
Porque é assim? É uma pergunta que deixo no ar.

E com isto me vou, não sem lhe deixar os votos de uma muito boa tarde.

Muita paz e saúde para si, senhora

Rudolfo Wolf

Maria Josefa Paias disse...

Amílcar Bernardi,

Apesar de não ser lusitano, creio que muitas coisas que aqui foram escritas têm aplicação universal, já que dizem respeito a traços de carácter e da natureza humana.
E se o nosso professor de Filosofia diz que aprende com todos nós, nós também queremos aprender consigo :)

Mas agora as vossas notícias devem dizer respeito, sobretudo, à cimeira da União Europeia com o Brasil, e só tenho pena que o Presidente Lula da Silva venha sujeitar-se a esta onda de frio que assolou a Europa e em que andamos todos a tiritar.

Muito obrigada e um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Viva Rudolfo Wolf,

Em primeiro lugar, bem-vindo por via directa a esta caixa de comentários, e, afinal, não foi assim tão difícil.

Quanto ao resto, temos que insistir e persistir numa cultura da responsabilidade, a nível particular e colectivo, pode ser que colhamos esses frutos mais tarde.

Obrigada e um abraço.