sábado, 6 de fevereiro de 2010

Já terminou a semana da parvoíce?

«(…) O momento parece propício não apenas para um exame de consciência nacional que raras vezes tivemos ocasião de fazer, mas para um reajustamento, tanto quanto possível realista, do nosso ser real à visão do nosso ser ideal. Nenhum povo, e mais a mais um povo de tantos séculos de vida comum e tão prodigioso destino, pode viver sem uma imagem ideal de si mesmo. Mas nós temos vivido sobretudo em função de uma imagem irrealista, o que não é a mesma coisa. Sempre, no nosso horizonte de portugueses, se perfilou como solução desesperada para obstáculos inexpugnáveis a fuga para céus mais propícios. Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que como no apólogo célebre está enterrada no nosso exíguo quintal.

Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos. As nossas possibilidades económicas são modestas, como modesto é o nosso lugar no concerto dos povos. Mas ninguém pode viver por nós a dificuldade e o esforço de uma promoção colectiva do máximo daquilo que adentro dessa modéstia somos capazes. Essa promoção passa por uma conversão cultural de fundo susceptível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e fazemos, sem por isso destruir a confiança nas nossas naturais capacidades de criação autonomizada, dialogante como tem sido sempre, mas não sob a forma de uma adaptação mimética, oportunista, das criações alheias e da sua vigência de luxo entre nós enquanto os problemas de base do País não recebem um começo de solução. (…)

(…) Em compensação refinámos no gosto da glosa jurídica, da astúcia formal, da conciliação do inconciliável quando o mais empírico interesse pessoal ou social está em jogo, sem jamais pôr em questão o sistema que sob conteúdos diferentes em cada época, mesmo das que aparecem sob a exigência da libertação e ruptura com a mentira social e intelectual institucionalizadas, se reconstitui e de novo se fecha sobre si mesmo. (…)»


de O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Eduardo Lourenço, Círculo de Leitores, 1988, excertos das pp 45, 46, 48.


4 comentários:

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
Texto muito a propósito.
A preclara inteligência de um pensador português de eleição.
Mas estes escritos pouca mossa fazem nas empedrenidas cabecinhas das nossas gentes, todas elas.
Não será possível, alguma vez, viver-se num país de gente normal ?
Para lhe ser franco, já começo a estar farto...
Um abraço.

Manuela Araújo disse...

Olá Josefa
Excelente texto. Gostei sobretudo da parte "Essa promoção passa por uma conversão cultural de fundo susceptível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e fazemos, sem por isso destruir a confiança nas nossas naturais capacidades ..."
Muito bom.
Bom fim de semana

Manuela Freitas disse...

Olá Josefa,
Tiro certeiro no texto do ensaísta Eduardo Lourenço!...
Tenho andado a pensar em todas estas parvoíces (como diz e bem) que têm acontecido, não consigo desligar, mas gostava de estar num sítio longe disto tudo, onde só pudesse dialogar, com as plantas, os animais, o sol e o vento...
Beijinho,
Manuela

Maria Josefa Paias disse...

Miguel, Manuela Araújo e Manuela Freitas, muito obrigada pelos vossos comentários.
Depois de uma semana em que estive sem vontade de publicar nada, precisamente pelo clima diário gerado, encontrei neste texto de Eduardo Lourenço as palavras para reflexão sobre alguns dos acontecimentos e até sobre a situação geral do país. Aliás, acabei de o publicar também no blogue colectivo.
Abraços e beijinhos.