quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A velocidade como abstracção

«Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro eléctrico e a espantosa faculdade de abstracção que tenho e cultivo.
Num carro eléctrico em marcha, eu sei, por uma atitude constante e instantânea de análise, separar a ideia de carro da ideia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para o Puro Imitar da Velocidade e a meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente - perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.
Um poente é um fenómeno intelectual.»
Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Livro do Desassossego (75)
Nota: Na eventualidade de não se concretizar o projecto do Comboio de Alta Velocidade, podemos sempre fazer este exercício como Fernando Pessoa.

4 comentários:

analima disse...

A "espantosa capacidade de abstracção" é o que ainda nos vai sustentando. Foi uma bela ideia lembrar-nos este exercício.

Manuela Araújo disse...

Esse Fernando Pessoa era impagável!
Tenho a certeza que assim viajava pelo universo ilimitado da(s) sua(s) alma(s), tendo-nos deixado preciosos relatos dessas viagens, umas mais desassosegadas que outras, mas sempre deliciosas.

Maria Josefa Paias disse...

Analima, não dizia outro poeta que «pelo sonho é que vamos»? E nós temos imaginação.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Manuela, creio que precisaria de várias vidas para acompanhar o Fernando Pessoa e todos os seus heterónimos ou "almas", utilizando a sua expressão.
Beijos.