terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - "Nunca conheci quem tivesse levado porrada"

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu, que verifico que não tenho par neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

6 comentários:

Paulo Lobato disse...

Maria Josefa,
Por momentos julguei reconhecer essa «gente» de que fala Pessoa; ideia absurda a minha: ele viveu num tempo tão distante do meu.
um abraço
(escolha fantástica)

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
Um Pessoa explosivo e crítico para com a sociedade e, de novo, sem rodeios.
Gosto muito.
Um abraço.

Benjamina disse...

Olá Josefa

A lucidez de Pessoa... e a falta de lucidez dos que o rodearam.
Não é qualquer um que vê os seus próprios defeitos, muito menos os admite perante os outros. Esse é se calhar a grande razão do falhanço da humanidade.
Obrigada pelo poema.
Um abraço

Maria Josefa Paias disse...

Paulo, a ideia não é absurda, porque há traços da natureza humana que se mantêm ao longo do tempo. Por isso é que é possível traçar perfis de pessoas e até de povos, e que muito contribuiu para a sofisticação da actividade e criatividade publicitárias quando querem atingir públicos-alvo.
E também é útil para nós, nas relações interpessoais, porque muitas vezes sabemos de antemão o que esperar de outra pessoa, reduzindo-se, assim, as desilusões.
Obrigada e um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Muito obrigada Miguel, fico feliz por ter gostado.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina, muito obrigada eu!
É difícil desiludirmo-nos com a lucidez de Pessoa.
Beijinho.