domingo, 8 de novembro de 2009

Como está "o caso mental português", hoje?

«Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria "provincianismo". Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa.
Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental - a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o pensamento é individual.
O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém, sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo, que mentalmente já existe, sabe já escolher - por ideias e não por instinto - entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor a ambas uma terceira, que seja própria. Quando, aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.
O que caracteriza a terceira camada, o escol, é, como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias. Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar inteiramente uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus - os que o levaram a aceitá-la - e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.
Esta divisão em camadas mentais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais - económicas ou outras -, não se ajusta exactamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.
Quando, portanto, digo que a palavra "provincianismo" define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo que essa palavra "provincianismo" define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camadas mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.» (...)
Fernando Pessoa, «O caso mental português» (1932), in O Rosto e as Máscaras, Antologia organizada por David Mourão-Ferreira, Ática, Lisboa, 1979, pp 170-172

5 comentários:

Benjamina disse...

Olá Josefa

Essa da divisão em camadas mentais está muito bem vista e muito actual.
Não me parece que actualmente, no entanto, se possa adequar uma camada mental a um estrato social, parece-me que as camadas mentais atravessam todas as classes sociais.
Assim como o dito provincianismo.
Fernando Pessoa fazia uma análise extraordinária da sociedade do seu tempo. Quanto do que ele disse, infelizmente, ainda hoje é actual!
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina,
Obrigada pelo comentário.
Ontem como hoje, pertencer à camada mental do "escol" ou "elite" é uma questão de saberes adquiridos, de saber pensar e decidir por si mesmo, não interessando o estrato social de onde se provenha.
Um abraço.

partilha de silêncios disse...

O provincianismo existe em todas as camadas sociais, e a característica do homem provinciano descrito por Pessoa, encontra-se no homem de qualquer nacionalidade.

Não acredito que a frase abaixo, também de Pessoa, defina o nosso “povo”.


“O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o pensamento é individual.”

Tenho muito orgulho de ser portuguesa.

O problema não é certamente do “povo”, mas sim da falta de sensibilidade para o olhar e conseguir vê-lo.
bjs

Maria Josefa Paias disse...

partilha de silêncios,

Peço que me desculpe se este texto de Fernando Pessoa de algum modo feriu a sua sensibilidade.
Bjs

partilha de silêncios disse...

Josefa

Eu é que peço desculpa,por este desabafo algo intempestivo.Com todo o respeito que tenho por Fernando Pessoa, quando leio este texto, imagino-o sentado num pedestal a a escrever, numa fase em que deveria estar a atravessar alguma crise de afirmação.

Mais uma vez as minhas desculpas.
bjs