segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Hoje, 74.º aniversário da morte de Fernando Pessoa, um texto de Jorge de Sena sobre "aquele senhor suavemente simpático"

«(...) Essa minha tia-avó, como a minha avó materna, foi uma das deusas tutelares da minha infância. Lembro-me de que, quando a visitava, às vezes encontrava lá aquele senhor suavemente simpático, muito bem vestido, que escondia no beiço de cima o riso discretamente casquinado. Parecia-me muito velho, e tinha ele então poucos mais anos do que tenho agora, já que morreu em 1935, aos quarenta e sete. Mas a calvície, os olhos gastos, o jeito de sentar-se com as mãos nos joelhos, e uma voz velada - o primo Chester contribuía com os seus uísques (em Lisboa, nos anos 30!) para isso - davam-lhe um ar estrangeiro, distante no tempo e no espaço. O meu primeiro contacto com a literatura inglesa sucedeu precisamente numa dessas visitas, quando, chegando eu com minha mãe, sobre a mesa da sala estava um livro que o vizinho do lado devolvia e era Romola de George Eliot. Curiosamente, e talvez por isso mesmo, é um dos raros livros que nunca li, de um romancista que admiro tanto. Quando, em 31 de Dezembro de 1934, os jornais noticiaram que um prémio do Secretariado da (então) Propaganda Nacional fora atribuído a Mensagem, de Fernando Pessoa, foi para mim um pasmo. Porque o premiado era precisamente aquele senhor amigo da minha tia-avó que não falava nunca de poesia e cujas aventuras modernistas eu ignorava. Ele morreu menos de um ano depois. Na noite de 27 para 28 de Novembro teve uma cólica hepática, e minha tia-avó, que o vigiava sempre que a irmã dele e o cunhado estavam vivendo na casa que então já tinham no Estoril, chamou o médico que o tratava, um primo dele, também conhecido dela, e avisou a família. Chamou-o contra a vontade de Pessoa. Foi este levado para o Hospital de S. Luís dos Franceses, um dos melhores hospitais particulares de Lisboa, onde morreu no dia 30. Eu, que andava já fazendo versos que os meus colegas de liceu achavam irritantemente sem medida, não sabia que coisa era o modernismo. Em 1936, lia devotadamente Teixeira de Pascoaes. E só em 1937 comprei aquela Mensagem de três anos antes; é que só então o premiado-amigo-da-família começava a ser, para quem, como eu, não conhecia ninguém, nem sabia que houvesse uma coisa chamada vida literária (bons tempos!), um poeta por direito próprio, como eu já o era então para mim mesmo.»
(in O Poeta é um Fingidor, Ed. Ática, 1961, pp. 81-82).
O blogue Mundo Pessoa dá notícia dos eventos que, a partir de 1 de Dezembro, comemoram os 75 anos da publicação da 1.ª edição da Mensagem de Fernando Pessoa, único livro publicado em vida do autor (1934), um ano antes da sua morte.

8 comentários:

Benjamina disse...

Tão cedo partiu o "senhor suavemente simpático" e tanta obra genial deixou. Será que o seu mundo de pensamentos e palavras lhe deu a felicidade que merecia?

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
que interessantíssimo texto.
É o que se chama o Pessoa visto por fora pelos olhos de um jovem e, pelos vistos, a grande impressão que lhe deixou, dado o retrato que transmite.
Mais intressante, ainda, pelo facto de, mais tarde, se ter transformado, e talvez por causa disso, num grande conhecedor da obra e do pensamento do Poeta.

PS.: Pelo que já vi, o Clube resolveu comemorar o dia com post's de fôlego. Ninguém combinou nada mas fomos todos no mesmo sentido.

Como sempre um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina,
Tendo em conta o que o próprio Pessoa (Bernardo Soares) diz no texto que contém a afirmação "minha pátria é a língua portuguesa", que já analisámos no meu outro blogue: "Gosto de dizer. Direi melhor; gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas", creio que, como "palavrou" muito, e por vários "eus", terá feito o que mais gostava de fazer em tão poucos anos de vida.
Quanto ao mundo dos pensamentos, é mais complicado, porque cada um poderá fazer uma leitura diferente através do que escreveu e eu aqui sou suspeita porque me sinto muito próxima de, pelo menos, um dos "eus".
Não sei se com isto teve a felicidade que merecia, afinal, o que é a felicidade? Será a proximidade que sinto quando o leio?
Obrigada Benjamina, também pelo texto do nosso Poeta que publicou hoje no seu blogue.
Um grande abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel,
De facto, alguns poemas ingleses de F. Pessoa foram traduzidos por Jorge de Sena (Pessoa escreveu em português, inglês e francês), entre muitas outras coisas.
Por isso este texto me pareceu apropriado, por nos dar uma informação próxima, quase familiar, dos últimos dias da sua vida, texto que não é muito conhecido.
E tem razão, o Clube em homenagem ao nosso Poeta foi hoje muito enriquecido com os textos publicados, e que muito vos agradeço.
Um grande abraço.

Ana Paula Sena disse...

Olá, Josefa :)

Não conhecia este texto, e muito agradeço a sua oportuna publicação aqui. É realmente deveras interessante imaginar e "ver" Fernando Pessoa através do olhar de um outro que com ele conviveu, neste caso, Jorge de Sena. Um olhar jovem e curioso que nos dá o retrato de um Pessoa tão simplesmente humano quanto eu costumo senti-lo, quando o leio (p'ra lá da sua evidente e contraditória complexidade).

Deixo-lhe um abraço [e mais informo já ter publicado o meu primeiro contributo, que espero aprove.]

Maria Josefa Paias disse...

Muito obrigada Ana Paula por ter passado aqui pela Sede do nosso Clube, e por ter gostado do texto que escolhi para esta homenagem.
Vou ver já o seu contributo.
Um abraço.

Maria Ribeiro disse...

MARIA JOSEFA PAIAS: NEm parece ter morrido ,tal a força da sua PERSONA, na nossa
vida de leitores, Professores e ALGUNS alunos... PESSOA , O AUSENTE PRESENTE!
BEIJO DE LUSIBERO

Maria Josefa Paias disse...

Maria Ribeiro, muito obrigada pelo comentário.
Bj