«(...) Essa minha tia-avó, como a minha avó materna, foi uma das deusas tutelares da minha infância. Lembro-me de que, quando a visitava, às vezes encontrava lá aquele senhor suavemente simpático, muito bem vestido, que escondia no beiço de cima o riso discretamente casquinado. Parecia-me muito velho, e tinha ele então poucos mais anos do que tenho agora, já que morreu em 1935, aos quarenta e sete. Mas a calvície, os olhos gastos, o jeito de sentar-se com as mãos nos joelhos, e uma voz velada - o primo Chester contribuía com os seus uísques (em Lisboa, nos anos 30!) para isso - davam-lhe um ar estrangeiro, distante no tempo e no espaço. O meu primeiro contacto com a literatura inglesa sucedeu precisamente numa dessas visitas, quando, chegando eu com minha mãe, sobre a mesa da sala estava um livro que o vizinho do lado devolvia e era Romola de George Eliot. Curiosamente, e talvez por isso mesmo, é um dos raros livros que nunca li, de um romancista que admiro tanto. Quando, em 31 de Dezembro de 1934, os jornais noticiaram que um prémio do Secretariado da (então) Propaganda Nacional fora atribuído a Mensagem, de Fernando Pessoa, foi para mim um pasmo. Porque o premiado era precisamente aquele senhor amigo da minha tia-avó que não falava nunca de poesia e cujas aventuras modernistas eu ignorava. Ele morreu menos de um ano depois. Na noite de 27 para 28 de Novembro teve uma cólica hepática, e minha tia-avó, que o vigiava sempre que a irmã dele e o cunhado estavam vivendo na casa que então já tinham no Estoril, chamou o médico que o tratava, um primo dele, também conhecido dela, e avisou a família. Chamou-o contra a vontade de Pessoa. Foi este levado para o Hospital de S. Luís dos Franceses, um dos melhores hospitais particulares de Lisboa, onde morreu no dia 30. Eu, que andava já fazendo versos que os meus colegas de liceu achavam irritantemente sem medida, não sabia que coisa era o modernismo. Em 1936, lia devotadamente Teixeira de Pascoaes. E só em 1937 comprei aquela Mensagem de três anos antes; é que só então o premiado-amigo-da-família começava a ser, para quem, como eu, não conhecia ninguém, nem sabia que houvesse uma coisa chamada vida literária (bons tempos!), um poeta por direito próprio, como eu já o era então para mim mesmo.»
(in O Poeta é um Fingidor, Ed. Ática, 1961, pp. 81-82).
O blogue Mundo Pessoa dá notícia dos eventos que, a partir de 1 de Dezembro, comemoram os 75 anos da publicação da 1.ª edição da Mensagem de Fernando Pessoa, único livro publicado em vida do autor (1934), um ano antes da sua morte.